terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Como encerrar seu ano sem nenhum tipo de motivação para o seguinte (um happy end)

É nosso primeiro ano-novo juntos. Enquanto o pernil está no forno, as uvas-passas as castanhas e os fios d'ovos descansando na mesa da cozinha à espera da decoração do prato, eu fico na sala, zapeando os canais da tv em vão, buscando algo que me prenda a atenção por mais de um minuto. Ela está no banho, um vestido vermelho que mal lhe chega aos joelhos espera na borda da cama, preste a se encher com o corpo dela.
Quando finalmente desisto da televisão, acendo um cigarro e abro uma cerveja, fuçando a coleção de cds na prateleira inferior. Frank Sinatra, Blur, Death Cab for Cutie, Chico Buarque, Tom Zé, Nirvana, The Cure: os cds não estão em ordem alfabética.
Ouço o chiado do chuveiro elétrico sumindo gradativamente, Cocteau Twins, Tom Waits. A porta do banheiro se destranca, e a vejo com a toalha enrolada um pouco acima dos seios, os cabelos presos por outra, como um turbante, passando apressada pelo corredor rumo ao quarto. O vapor que escapa vai preenchendo-o, derramando-se na sala.
Resolvo colocar o Transatlanticism no cd-player, o que me parece uma escolha mais óbvia do que acertada.
Volto à cozinha, ao pernil, aos fios d'ovos...
É nosso primeiro ano-novo juntos.

So this is the new year.
and i don't feel any different.
the clanking of crystal
explosions off in the distance

Ela chega por trás, me abraça e me dá um beijo no pescoço. Seu perfume francês vai se misturando aos odores de carne e arroz, as cebolas fritando com as amêndoas ao meu lado. Viro-me para vê-la, seu corpo envolto de vermelhidão. É a primeira vez que usa um vestido para mim. As coxas grossas, que nuas na cama me deliciavam e prendiam a atenção os lábios entregues a elas subindo lentamente, colam-se pelo vestido, são quase gordas, quase triste de se ver. Os seios juntos, antes tão desejáveis, agora são só... seios, erguidos ridículamente conta a gravidade.
Volto-me para as cebolas.
Ela abre uma garrafa de lambrusco, e me serve uma taça. Brindamos, eu a beijo, o gosto do vinho dela passando para o meu.
Levamos a ceia para a mesa.
Seus olhos me revelam uma profundidade de nada que me dá ascos.

I wanted to believe in all the words that I was speaking,
As we moved together in the dark
And all the friends that I was telling
All the playful misspellings
and every bite I gave you left a mark

Eu tiro uma lasca do pernil, e ela me censura. A gente só pode comer depois da meia-noite.
E cadê a lentilha?

Tiny vessels oozed into your neck
And formed the bruises
That you said you didn't want to fade
But they did, and so did I that day

Tomo mais uma taça de lambrusco num gole só. Prendo seus cabelos entre meus dedos, puxo-a para mim e me perco no seu pescoço.
Estouramos uma garrafa de champagne quando os fogos começam. A rolha voa sacada abaixo, e eu a abraço por trás, sentindo seu traseiro antes-sexy-agora-gordo junto a mim.
Arremeso-a contra a mesa, jogando o pernil ao chão, amêndoas e uvas-passas e fios d'ovos espalhando-se enquanto ergo seu vestido vermelho até a cintura e arranco-lhe a calcinha.
Vai ser nosso último ano-novo juntos de qualquer forma...

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Pequenos fragmentos da vida alheia - I

Harrison's Pub, 12 Nov. 08, aprox. 18h56

(Trecho segue-se de interlúdio a respeito de reminiscências do trabalho)

- ... e é óbvio que o sujeito furou, né? Quer dizer, porra, a palavra tava ali na frente dele, e ele furou! Tipo... não dá pra levar a sério, saca?
- Foda.
- É muito foda.
- É.
- (silêncio) A F. terminou comigo.
- Porra. Quando?
- Antes de ontem.
- Cacete. Que merda! Pô, você não me falou nada antes.
- É, sei lá... tava assimilando, saca?
- Foda.
- É.
- Mas, tipo, o que houve?
- Sei lá, velho. Piração de mulher. Não sei.
- (silêncio).
(Goles alternados de cerveja-importada para ambos)
- Tipo, ela veio falar comigo, papo que eu não levava a sério a relação, que eu tava sempre com um pé atrás.
- Você?
- Pois é! Na verdade, ela chegou toda meiga, sei lá, a gente tava conversando numa boa, sabe? Aí, sei lá, eu tava pensando numas coisas ultimamente...
- Que coisas?
- Ah, sabe quando você vê que a coisa toda, o relacionamento e tal, tá evoluíndo e você tem que começar a tomar umas medidas? Assim, quando a coisa meio que virou um namoro, mas ainda não é um namoro, e você sabe que deveria meio que oficializar isso com ela, e se preocupar em comprar um presente de natal bacana, e se você tem que ver qual é a programação dela pro ano-novo e se vocês vão passar juntos (gole de cerveja) sabe? Mas, ao mesmo tempo, você fica com aquele pé atrás, porque você tá realmente pensando essas coisas, mas e ela? Às vezes ela tá achando que vocês tão passando um tempo juntos sussas, e não vai ser nada demais, ou pelo menos ainda não é, e você chegar e tentar todas essas coisas... as coisas oficiais... pode ser um tremendo peso. Entende?
- É, tipo, como se você tivesse muito apaixonado e quisesse forçar as coisas.
- É, meio ficar parecendo algum tipo de maluco obcecado, sabe?
- É, sei.
- Então... mas aí a gente tava nesse papo bacana, meio sussas, e ela muito fofa, meio meiga e tudo mais, e tudo bem, mas eu tava com essas coisas na cabeça, e aí você sabe como eu sou...
- Meio impulsivo e tal, né?
- É, meio impulsivo.
- Sei.
(Goles alternados de cerveja-importada para ambos)
- Aí eu disse, tipo "queria te falar uma coisa" e ela "fala" e eu "é meio idiota, eu acho" e ela "tudo bem" e eu "então... queria te dizer que, tipo, se você não quiser mais ficar comigo em algum momento e tal, seja honesta, ok?" (gole de cerveja).
- E ela?
- Aí ela, tipo, ficou meio olhando pro nada um tempo, sabe, e tipo pirou! Tipo, veio com um papo de que eu "forçava demais as coisas, e que nunca sabia o que queria da vida, e pisava no acelerador e depois no freio (péssima analogia, né?) e que tava jogando um verde pra ela terminar comigo e que eu sempre fazia isso e que, se era isso que eu queria, ela terminava".
- Putz... que merda.
- É.
- Mas, pô, não era exatamente você que queria algo sério?
- É.
- Foda.
- É.
(Goles alternados de cerveja-importada. Dedos levantados em direção à garçonete. Dois pints Heineken. Olham a bunda da garçonete, enquanto ela se afasta. Sorrisos maliciosos trocados entre ambos)
- Tipo, não é que eu QUISESSE algo sério, sabe? Como se fosse isso ou nada. É só que, bom, sei lá, a coisa assim em aberto me irrita.
- Saquei.
- Assim... eu gostava da F., ou sei lá... assim, eu gosto dela, ela é, ou era, não sei, uma garota massa, saca? E sei lá... podia ser massa ficar com ela, tipo, sério, assim...
(Dois pints Heineken são postos na mesa. Sorrisos maliciosos goles de cerveja-importada)
- Foda.
- É, foda.
- Mas e aí? Vai ligar pra ela?
- Não.
- Certo!
(Goles de cerveja importada)
- Não tem que ligar mesmo. Mulher é foda.
- É.
- Tipo, que nem a (?), lembra?
- Essa foi foda...
- Porra, a mina ficou no meu pé um mês. Um mês. Aí tá, beleza, acabamos saindo e eu fiquei com ela, e ela me liga no dia seguinte, e a gente sai de novo dois dias depois, e ela manda mensagens no meu celular, e pô, o que eu penso? "Tá, essa garota tá mesmo a fim de mim", e começo a relaxar, sabe?
(Goles de cerveja) Começo a ligar também, a mandar mensagem... e duas semanas depois, ela termina porque "eu tô levando a coisa muito à sério".
- Vadia.
(Goles de cerveja)
- Não dá pra entender. Se você não telefona e faz, tipo, que não liga muito, você é um insensível e aproveitador; se liga, você tá indo rápido demais e não vai dar certo.
- É foda.
- Acho que não dá pra entender.
- É meio, assim, nós dois somos caras muito legais, sabia? A gente tenta não sacanear ninguém, e acaba sendo sacaneado por isso.
- É!
- Tipo... no fim das contas, essas minas são tão zuadas que tipo, elas querem um cara que vá zuar mais com elas.
- É meio que um lance "preciso ser uma mártir".
- É, meio culpa católica.
- É.
- Aí nós somos, tipo, uns caras sérios (gole de cerveja) e a gente não vai sacanear ninguém, então a gente se fode.
- É.
(Goles alternados de cerveja-importada)
- Mas é um saco ser sacaneado sempre, saca?
- Saco.
- Tipo, pô... sou um cara legal e tudo mais. Não faço o tipo "vamo-pro-meu-apê-que-eu-tenho-uma-coleção-de-selos-incrível" nem nada, então, pô...
- Eu sei. Mesmo.
- Então, cara...
(Goles alternados de cerveja-importada)
- Acho que eu devia ligar pra F., sabe, pra ver se tá tudo bem.
- Não faz isso, cara.
- Sei lá, eu meio gosto dela.
- É, foda.
- Muito foda.
- É...

- Mais dois pints, por favor?!
- ...
- Essa garçonete é uma graça, né?
- Mó gostosa.
- Eu poderia casar com ela. Tipo, amanhã. Fácil.
- E a F.?
- É mesmo... ah, foda-se ela.
- É!
- É...
(Goles alternados de cerveja-importada para ambos).

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

III

Por ora, deixe-me agora
embalado ao som de um expresso:
Ginger coffee e ao fundo o
silêncio acolhedor da Vila Madalena.
Se tudo fosse um sonho, e a fumaça
e o café
fossem tão apenas sonho;
Lançaria-me em vôo à tua janela
e te despertaria com um canto
e cantaria até eu próprio fosse desperto.

Te amo de um jeito tão simples!

Mesmo assim, te amo além da métrica
da rima
da melodia e da harmonia.
Te amo com os
olhos distantes,
com o sorriso escondido
e as mãos no bolso.
Te amo com o coração atado,
com as palavras medidas
e pequenos presentes e mimos
[guardados em pensamento;

Te amo como um tolo pois não sei amar de outro modo.

Te entrego tesouros e o mundo cobertos
[de chantilly,
Minh'alma ao sabor do Ginger coffee;
Toma meus sonhos e leva-os contigo!
ou Meu poema recheado num petit gateau.
Te dou um beijo
e afago tua mão
e cheiro teu cabelo
incontáveis eras por segundo.
Te amo assim, inconsequente.
tão belo e bobo
que meu coração se descompassa
num free jazz interminável.

O mundo lá fora de mim é silêncio.
O Ginger coffee é passado,
o poema se foi.
Tornado vento
Bateu em tua janela
Canta em teu ouvido
Embala o teu sono.

sábado, 25 de outubro de 2008

Mais uma tarde de estudos no quarto do Juquinha...

Caralho filho duma puta você acertou o meu pé gritando no meu ouvindo e eu porra onde então eu vi a mancha viscosa se erguendo por entre os cordões tailandeses do nike e o estampido ainda zunia dentro do meu ouvido e ele caralho caralho puta merda e aí o berro virou um choro porra fudeu e eu caralho essa merda de pé no meu caminho e a parada ainda fumegava na extensão metálica do meu braço o cara chorando pedindo a mãe dele e porra o troço quente na minha mão e eu não sabia muito bem qual era o próximo passo então eu soltei a parada e ela foi de encontro à poça viscosa de mancha contornando a esquina do tênis tailandês caro e o livro de geografia jogado em cima da mesa merda merda minha mãe vai me matar e a minha então a merda do pé do sujeito no meu caminho e o berro era muito mais pesado e delicado do que eu imaginava antes e eu devia ligar pro hospital logo chamar ambulância mas aquele caldo de vermelho fazendo ziguezague pelo quarto é um algo tão bonito e tão bonito merda chama logo alguém tá doendo eu tô aleijado tô fudido agora que eu não como ninguém e cala a boca porra vira homem sua bicha e uma ou duas fungadas e mais um filho da puta você fudeu com o meu pé e me chama de bicha eu vou cagar seus dentes pra fora da tua boca e cala a boca é sério os desenhinhos que a mancha vazada saida dos confins do cadarço tailandês porque lá segundo eu saiba o troço todo é mais barato e eles cobram ainda mais caro por isso e a coisa não faz muito sentido se você para pra pensar enquanto um jato só mais um jatinho de nada daquele grosso caldo rubro quase negro cai e vai se misturando com o que já tava por ali fora uns cadarços mágicos mesmo cuspindo tudo isso e ele funga alto mais uma vez então aí a gente só olha assim por um bom tempo a parada já vai secar e manchar todo o assoalho e eu penso se não devia chamar o médico filho da puta você me fudeu ou se não devia limpar o chão me fudeu mesmo ou sumir com aquele troço metálico bonito tá doendo pacas mas o lago de substância de tênis tailandês já fez desenhos contornou a arma fez um círculo e passou por dentro e a gente olha e olha e puxa é tão bonito e eu descubro que é isso que eu quero manchas viscosas em tênis tailandeses pro resto da minha vida e a gente olha e olha e olha e olha

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Um rascunho de noite

Cada eco que estimulávamos trepidava longamente pelos canais do quarto escuro. Eu e ela, eu e você, você e ele; nós dois. Então você se desfez das suas roupas, ou ela se desfez, não sei mais, muito mais rápido do que eu ou ele ou nós dois poderíamos notar. Estávamos comovidos pela existência do ato, e não por ele em sí.
Então ela, ou você, ou ambas, se deitaram, nuas, me olhando, ou a ele; os olhos marejados e suplicantes, talvez de desejo, não sei, ele talvez saiba. Fiquei um longo tempo te olhando, ele não olhava, ela não se deixava olhar; eu deitei, ou ele deitou e eu fiquei observando, você e ele ou eu e ela ou talvez eles dois enquanto olhávamos. Eu te beijei? Ou foi ele? Ela, quem sabe?
Será que meus lábios se moveram num sussuro, ou só observei à distância segura?
Acho que te amei por alguns minutos, senti cada parte do seu corpo com meus dedos, com a ponta deles, senti teu seio macio, ele é macio? na minha imaginação talvez, os seios dela eram pequenos, quase invisíveis, os seus não sei, talvez ele saiba.
Talvez eu saiba como os teus são, e ele saiba como são os dela.
Talvez ele saiba como ambos são macios e belos e eu simplesmente não saiba porra nenhuma.
Mas aí eu te vejo despertando ao meu lado, teu hálito já não me é tão agradável mas eu sorrio mesmo assim porque sei que o efeito do halls na minha boca também já se foi há tempos. Beijo-te em silêncio e me proponho a te preparar o desjejum, e você me pede torradas e ela croissant e ele café preto. Não sei se dou conta de trazer tudo na mesma bandeja.
O teu toque suave na minha face.
Ou você tocou o rosto dele, mas fui eu quem o sentiu?
Acho que é mais ou menos aí que percebo que ela já se foi, que você nunca esteve e que ele é quem sempre existiu. Percebo as coisas cruas e frias me deslizando espinha adentro, brigando por seu espaço, é ali onde eu vejo as coisas como elas são.. Ou será que estou imaginando isso também? Na minha cabeça, tudo é tão confuso e eu não sei a hora de parar, então você se levanta e se veste e ela vai-se seminua e ele nunca esteve aqui, só você e ela e eu acho que também estava, mas quem há de dizê-lo?
À tarde, vejo a outra me olhando de soslaio, e aí eu penso se ela realmente me olha ou se sou eu quem quer isso tão desesperadamente que retê
m cada piscadela como se fosse a minha. Pesco os movimentos leves e vejo a outra e penso nela e me lembro de você. Eu penso em muitas coisas e lembro de tantas mentiras e tento não focar em nada, e talvez eu sequer esteja aqui, e acho que só o que eu preciso é de mais um café e mais uma cerveja ou mais um cigarro ou mais um sonho e então desvaneço.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Batíamos frente a frente, amando milhares de quilômetros entre nós, cada um como uma punhalada, um golpe seco e firme a nos desafiar, a dizer desista, e eu desisti, e fui embora e me deitei com uma garrafa e é só. A dor é passageira e incômoda, e sempre volta vestida numa nova pele, uma carcaça de sorrisos e cheiros e sonhos e esperanças que se vão. Aí você acorda, lava o rosto, come uma torrada e pega o ônibus para o trabalho. Batíamos frente a frente amando milhares de quilômetros entre nós e desistimos e nos perdemos.
A vida é a arte do desencontro. Tecemos uma rede de impossibilidades com tamanha fraqueza que me comovo a ver os anos passando rápido e o rosto se deteriorando e o cabelo caindo imperceptivelmente banho após banho. Nos desencontramos porque não há nada mais a se fazer. É a poesia de existir, se perder, procurar em olhos turvos a beleza que já não reside em nós. Amar a infinitude do vazio, amar a boca que só aparece em sonhos. Desdenhar o que nos é real.
A vida é a arte do desencontro, e nela nos levamos. Naufragamos em tudo o que é belo e vão, os sonhos desentendidos meus e teus. O ventre plácido, e a imaginação que voa e se perde e de repente está em queda livre sete quilômetros até o chão e o desespero é só mais uma forma de transcender aquilo que chamamos de alma. Eu me perco em você e me perco em mim mesmo, e não choro a noite porque não há o que chorar. Já não existe redenção, ou existe e ela está escondida dentro do seu estômago e eu rezo que você me devore.
Eu não te amo. E, quando o amo, faço-o apenas por mim.
Nietzsche dizia que, numa relação, uma pessoa ama e a outra permite ser amada. Eu amo porque o fardo de ser amado é demasiadamente pesado, a responsabilidade pelo teu
corpo e pela tua alma eu não poderia suportar, então eu amo porque essa dor é apenas minha, e não a tua que eu tenho de carregar.
Mas não te amo, porque o amor tinha que ser autruísta e sincero e responsável, e Deus sabe que eu não sou a melhor pessoa desse mundo.
Sou só aquele que se perdeu de você.
O que se perdeu de si próprio.
A vida é a arte do desencontro.
E seguimos nos desviando, correndo para longe, passos largos, olhos à frente, pontos turísticos da nossa memória, a noite passa, olhamos as estrelas, eu tomei um café e fumei um cigarro, você só olhou e disse que meu mau-humor era lindo, minha zanga inocente, minha tristeza é aquilo que você ama sem compreender, como uma criança, e eu sinto teu pescoço tão perto, então eu acordo e não era um sonho não era um pesadelo; não era nada. Era aquilo que deveria ser, mas não é.
Somos apenas rostos familiares num álbum gigantesco de memórias insípidas o gosto amargo o fel empapando a língua. Somos todos desejos e nenhuma realização. Somos o abraço desperdiçado por entre os lençóis solitários. O perfume confuso. Eu te imagino aos meus braços, eu me desvincilho de você. Quem é você? Não sei. Apenas o sinto e me modifico e as entranhas se embaralham e teu nome é uma cifra de segredos e então me esqueço.
Te amo com a profundidade de um nada.
Não sou capaz de amar a mim mesmo.
Ou sou?
Apenas deixo que as coisas sigam, num rumo incerto, observo de longe e dou risada dos pequenos roedores se afogando na maré. Acaricio minha lágrima e a deixo pender como teus cabelos. Minha boca é a tua, meu desejo é o teu; ainda assim, dormimos sozinhos, separados pela distância de um trem, de um avião, de cinco passos tímidos até o teu portão: o que importa? Vivemos a ânsia, a sofreguidão, o regurgito, a morte iminente que espreita na esquina.
A vida é a arte do desencontro, e a vivemos com tal intensidade que sequer lembramos que poderíamos nos encontrar. Cada um com seu copo de cerveja. Cada um com seu cigarro. Cada um com sua tristeza. Cada um com seu desejo.
Adormece hoje, querida, e sonhe com nuvens de algodão-doce. Eu flutuo acima delas ao teu lado, mãos dadas bocas coladas desejos unidos.
Eu durmo embriagado com meu desejo do teu sonho.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Mosaico

Junte todos os pequenos fragmentos. Os pedaços da história pescados aqui e ali, entre conversas que você ouve casualmente. Os boatos que meia dúzia de pessoas espalhou, cada versão divergindo da outra. Junte aquilo que você viu, ou aquilo que você pensa que viu. As idéias românticas que você tem. Monte um quebra-cabeça de fatos e lendas, verdades e mentiras, realidade e ficção, e aí talvez, só talvez, você comece a entender o que realmente houve.

Clarissa atravessou o corredor com pressa, os passos apertados por entre seu all-star número 38, o cabelo ondulado chacoalhando e batendo em suas costas. O gosto do Malboro, que agora jazia numa das privadas do banheiro feminino, ainda anestesiava sua boca. Esbarrou em alguém cujo rosto era uma incógnita, o que não era raro. Quando você é uma formanda, qualquer pessoa que não esteja no seu último ano também é apenas um obstáculo no seu caminho para a classe. Ou, ao menos, era assim que ela pensava, e isso era o bastante.
Entrou na sala do 3º B fingindo uma calma que não demonstrara no corredor. Afastou os cabelos da testa suada, e caminhou devagar rumo a sua cadeira, rebolando entre os três nerds que sentavam nas primeiras carteiras. Não que ela não rebolasse normalmente, mas sentia um prazer ainda maior em fazê-lo para aquele tipo de garotos. O mesmo prazer que tinha ao balançar um pedaço de carne para seu cachorro antes de enfiá-lo inteiro na boca, só que com eles era mais tátil. Mais racional. Mais cruel.
Enfim, muito mais prazeroso.
Sentou-se ereta, projetando seus seios para a frente, e reparando de soslaio a atenção que isso atraia nos rapazes que sentavam ao seu redor. Aquele olhar seco, direto, quase animal; era disso que ela gostava. Ela sabia que não era uma pessoa brilhante, mas até aí ninguém ali era. Clarissa, entretanto, tinha a certeza de que poderia se sobressair a todos eles, pois só ela tinha plena ciência de suas capacidades. Domínio sobre seu corpo, sobre o que achava que fazia dela especial. Se fosse feia, ou tivesse um corpo menos desenvolto, talvez concluisse que esse tipo de coisa era injusta, uma futilidade que não poderia condizer com a realidade da vida. Como não era esse o caso, ela simplesmente concordava, e seguia dentro das regras do jogo.
Abriu o caderno e fingiu se interessar pela literatura de Machado de Assis, enquanto a caneta deslizava pelo papel em linhas disformes, dispersas. O problema ali não era a aula, ou pelo menos não somente; Clarissa achava que, mesmo que quisesse prestar atenção num velho falando dos escritos de outro velho, não conseguiria desviar sua atenção da festa daquela noite. As aulas acabariam em uma semana, e aquela era a primeira comemoração de sua entrada na vida adulta. Nada poderia ser mais importante que aquilo, e haviam detalhes a serem planejados: que roupa vestiria, qual seria a desculpa para sair de casa à noite. Já tinha tudo na cabeça, só precisava revisar os detalhes antes de partir para a ação.
Quando o sinal da última aula tocou, os desenhos do seu caderno dançavam ao som do último hit radiofônico, num belo vestido preto.

Fernando ergueu o olhar ligeiramente enquanto Clarissa passava, a bunda colada numa calça de lycra, balançando de um lado para outro, num ritmo lento e vibrante. Ele acompanhou sedento cada golpe lateral que o traseiro dela dava em sua imaginação. Por um momento, vislumbrou a possibilidade de tê-la nua, na cama, chamando seu nome entre sussuros e piscadelas de gemido de gozo, mas a visão logo evanesceu, ciente de sua própria inabilidade com as garotas, especialmente uma das mais populares do colégio.
Ele sabia que, na maioria das pessoas ali, despertava algo similar ao asco. Não que fosse feio - na verdade, anos depois, se descobriu com uma barba espessa, o cabelo rente, e dono de um charme cativante, embora tristonho -, mas seus hábitos por ler incessantemente, a recusa em participar das atividades físicas, aliadas a um cabelo emaranhado e um rosto cravejado de meia dúzia de espinhas o tornava uma espécie de leproso cultural, alguém cuja associação na selva que era o colegial significava a morte de qualquer popularidade ou boa-vista entre os colegas.
Seu único amigo, se é que podia lhe atribuir tal título, era Jonas, um sujeitinho mirrado, com um largo óculos e o rosto tão abarrotado de acne que pareciam amêndoas. Tinha todos os ditos defeitos de Fernando, mas ainda se gabava de maneiras porcas, o cabelo ensebado e a roupa, sempre cheirando a suor curtido. Na verdade, sequer Fernando gostava muito dele - os hábitos nojentos e uma arrogância incabível em alguém tão impopular o irritavam -, mas partilhavam de gostos similares, e assim tinha ao menos uma companhia para os horários do almoço. Somente no primeiro ano da faculdade Fernando se deu conta que se aliar a um sujeito tão visivelmente imundo e prepotente pode ter ajudado em sua rejeição pelos colegas, mas não pensou muito mais nisso desde então.
Trocaram olhares, partilhando silenciosamente o gosto pelas formas de Clarissa, cada um perdido por um momento em seus próprios sonhos pela garota. Jonas ainda confirmou suas intenções imaginárias sussurando alguma coisa sobre "chupar a noite toda", mas Fernando não teve muita vontade de pedir que repetisse, e por isso simplesmente sorriu e voltou sua atenção ao professor. Não que Machado de Assís fosse algo que realmente o interessasse, mas qualquer coisa era melhor do que dar atenção às sujeiras sexuais de Jonas.
Anos depois se arrependeu de não ter partilhado mais alguns segundos daquela pequena farra sexual imaginárias. Mas a inocência perdida não volta.

A urgência dela, suas palavras desenfreadas, desmedidas: tudo isso, que os outros consideravam alguns dos defeitos de Fabiana, era o que encantava Bruno. Beijava-lhe os dedos, perdia-se e amontoava-se nos cabelos dela, em seus pêlos, na maciez de sua pele. Ela tinha cheiro de amêndoas ou rosas, e brilhava na escuridão do quarto. Muitas vezes ele a amou imaginando-a um anjo, com asas e auréola, afastando seus demônios da cama. A maneira como ela sorria no meio de uma discussão aparentemente severa de sua parte, e como ela o beijava nos olhos fechados.
Percorreu-lhe o dedo indicador pelos lábios outrora rosados. Fitou-a por um tempo, dormindo, e lembrou-se de todas as ternuras de seus momentos felizes. O tempo que se conheciam, e teve vontade de abraçá-la, mas se conteve.
Abaixou ao ouvido dela e sussurou palavras doces, mal ouvidas pelo sussurro que não atrapalhasse seu sono.
Levantou-se e caminhou até o meio da sala, rumo a porta. Olhou para trás e voltou, correndo.
Jogou-se rumo ao seu corpo e a abraçou, chorando. Lhe disse que a amaria eternamente, fez juras de paixão. E beijava-lhe a boca fria, quando três homens o carregaram para longe do caixão.

Fernando passou três anos pensando em Clarissa. No meio tempo, perdeu a virgindade, amou por seis meses uma garota de nome Sofia e a esqueceu. Hoje, as lembranças que lhe vêm à cabeça são rasas e muitas vezes sem sentido. Ele prefere se sentar no meio da madrugada, o edredon cobrindo-o apenar parcialmente, e olhar Jéssica, dormindo semi-nua, e acariciar seus cabelos suavemente para não a despertar.

Clarissa acorda cedo, ruminando um leve mal-humor vindo não tanto da luz parca que ainda pensava em clarear a sala, mas principalmente da rotina que provinha disso. Caminha até a cozinha de pijama, chinelo de dedo; colocou água no fogo, e despejou quatro colheres de café no coador. Enquanto passava o café, esquentou leite. Pegou dois copos com café e leite quentes, ambos com três colheres de açúcar cada, colocou-os numa bandeija, caminhou novamente pelo corredor, entrou em outro quarto, despertou os dois filhos pequenos, serviu-lhes, esperou que se arrumassem, levou-os até o portão e ficou observando enquanto caminhavam as duas quadras até o colégio. Depois, voltou para dentro de casa, tomou um gole de café puro sem açúcar, acendeu um cigarro, pensou no ex-marido e na amante e, pela primeira vez no dia, lembrou-se de Fernando.

Encontraram-se casualmente um dia pela rua. Agora, ambos tem trinta e poucos anos, a pele já demonstra cansaço; os cabelos dele estão mais ralos, e os dela, menos bem cuidados. Ela passa por ali todos os dias, ele só ocasionalmente. Não se viam fazia algum tempo, e sequer se falavam desde muito antes da formatura. Trocaram olhares rápidos, e ambos, apesar de que nunca souberam disso, pensaram em parar o outro para conversar.
Nenhum deles o fez.

Clarissa se casou pela segunda vez, Fernando se divorciou. Ela se separou novamente, ele não se casou mais. Ela nunca mais amou ninguém, ele teve casos passageiros com mulheres que sequer lembra o nome. Ela engordou de tristeza, ele emagreceu pelo câncer. Morreram os dois numa tarde de abril, ele num hospital, ela numa ruma movimentada. Foi quase ao mesmo tempo, mas ninguém jamais fez a relação.

As peças não se juntam perfeitamente. A vida só parece um mosaico - aqui, na realidade, é tudo mais cru, mais espaçado, os ladrilhos mal se tocam. Os espaços em branco da vida, aquelas partes da história que nós nunca ouvimos, que nunca nos deixa ter certeza, é sempre a maior parte. É etérea e eterna. Os pontos de nossa própria existência, aqueles que se chocaram por acaso, aqueles que nunca sequer estiveram perto, são tão vagos e singelos e tristes e pequenos e tenros que nós nunca saberemos realmente sobre eles. Só podemos divagar. Pensar em tudo isso, ou deixar pra lá. Não existe a resposta certa - o mosaíco se completa sozinho. Ou permanece em aberto. Não sei. Acho que nenhum de nós nunca terá a resposta, e isso vai doer e vai incomodar e vai sempre deixar uma dúvida sobre se fomos felizes, se perdemos algo, se ainda existe algo a se encontrar, antes de fatalmente nos despedirmos de nossa própria obra, de nossos ladrilhos incompletos, e nunca nunca saber como ele ficou, visto de cima.
Eu penso nisso, e penso e penso. Aí às vezes me bate uma tristeza, às vezes eu sorrio. Às vezes, eu só penso em Clarissa e Fernando, e aí eu deixo estar...

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

In the stage she remains

Cala essa canção nojenta que ressoa
pelos mil e um cantos da minh'alma.
Já se passaram três anos desde a
última caminhada
E ainda ginga
Ainda ginga
Essa velha melodia.
Como você está
nesses dias
turbulentos?
A velha ferida ainda dói?
O pûs
Amargo
Estancado
Dele eu provei.
Dele eu ainda provarei.
Dele eu sorvi.
Dele eu sorveria eternamente.

E no entanto, três anos se passaram
desde a última caminhada.
Ainda tens o beijo que te enderecei,
mas guardei no bolso
junto ao maço de cigarros?

- O poeta está morto! Longa vida ao poeta!

Troquei o amor por um trago.
Afoguei todo ele numa poça de gim.
Se ainda dói?

Três anos desde a última caminhada.
Vimos folhas caindo, tombadas pelo outono;
todas cinzas e mortas
tudo apagado pelo tempo
tudo é escuro, surdo
- não; é impossível ouvir o som de tua viola...

E aí caminho por entre abismos
Louco solto abarrotado
de idéias consumido de sentimentos
o ódio me transborda
me preenche o amor!
Não
Não
Como poderia eu prosseguir?
Foi-se o tempo de que jovem acreditava
Deus está morto, mas antes morreu-se o poeta.
caí in-con-tá-veis vezes!
Ainda assim caminho por entre abismos
Louco solto abarrotado
de idéias consumido de sentimentos.

in the stage she remains
playing up her play

Florescemos em três anos.
Crescemos como erva-daninha.
Destruímos tudo ao nosso redor.
Consumimos cada pedaço de afeto como vermes
como vírus
com nojo e escárnio
E fomos embora.

Ainda assim, guardo uma das folhas mortas de outono.
Já está rota pelo tempo.
Cheiro-a duas vezes antes de deitar-me.
Não significa nada.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Pequeno relato sobre meus dias de chuva

Não sei exatamente quando começou. Quer dizer, eu poderia dizer datas, hora aproximada, clima e umidade do ar, pressão atmosférica; todas essas informações inúteis que, no final das contas, não fazem diferença alguma. Poderia te contar tudo: como meu pai recolheu todos os animais do pasto, ou de como minha mãe juntou desajeitadamente as roupas no varal, enquanto eu colocava meus irmãos menores pra dentro de casa.
Poderia te contar como ficamos olhando os primeiros pingos de chuva cairem.
Como pensamos que era só mais uma tempestade.
Se você me perguntasse, e eu estivesse no clima de responder, eu bem que poderia te contar como aquela chuva se arrastou por horas. Como nós nos levantamos no dia seguinte, e a água ainda descia sem parar. Poderia falar sobre o noticiário matinal na tv, e como eles comentavam que, devido a uma anomalia inexplicável, uma mesma tempestade abatia todos os lugares do mundo, simultâneamente. Os metereologistas inconformados, em reuniões com cientistas e afins, tentando resolver o mistério. Sobre como as pessoas que habitavam regiões abatidas pela seca comemoravam o milagre. Sobre o trânsito infernal que assolava as grandes cidades do mundo.
Poderia te contar das enchentes. De como todo mundo, mais cedo ou mais tarde, parou de comemorar.
Se você perguntasse, eu poderia contar que continuou a chover aquele dia. E no seguinte.
De como reparamos, depois de umas duas semanas, que as plantações tinham alagado. E que as galinhas tinha morrido também. Da comida ficando escassa depois de algum tempo. De como eu e meu pai saimos de casa, no meio da tempestade infernal, e te descrever como ele retalhou cada vaca, cada porco, cada maldito animal que ainda não tivesse se afogado ou morrido de fome. De como voltamos com quilos de carne crua e sangrando para a cozinha. Do estoque desesperado em cada canto da geladeira. Armários. Caixas de isopor. Do plano para que não morressemos de fome.
Eu poderia dizer que nós não comiamos tanto assim. Poderia te contar do cheiro da carne apodrecendo. Dos vermes infestando a despensa.
De como os vermes não digeriam no meu estômago.
Poderia te contar de como parei de estudar os livros do colégio depois de um tempo. De como eu comecei a atrofiar e de como eu sentia falta do futebol. Das bobeiras do colégio. Dos desenhos de pintos no caderno das garotas. Da saudade que eu tinha da Analih. De como eu ficava puto por não ter transado com ela quando pude. De como eu me masturbava duas vezes por dia olhando a foto dela, e de como ela acabou gasta e fedendo a suor e uma merda de uma gozada que eu dei por acidente. De como eu incendiei a última lembrança que tinha da minha garota, e joguei pela janela, direto no lago novo ao redor de casa.
Dos programas evangélicos loucos na tv. Dos profetas de Deus clamando o fim do mundo, não pelo fogo, mas pela água. O segundo dilúvio. Dos saques desenfreados. Da onda de crime.
De como tudo isso parou quando não dava mais para sair de casa sem um barco.
Sobre perder a noção do tempo. Sobre não saber que dia é. Viver absorto numa chuva incessante.
Eu poderia contar para você sobre quando a televisão já não sintonizava mais nenhum canal. Sobre o rádio não ter mais música. Sobre o corte de energia. Viver a luz de velas. Não ter o que comer. Tédio. Ver as mesmas quatro pessoas o tempo todo, ou mofar sozinho trancado no quarto. Ler todo maldito livro que você pode ter na casa no escuro, e foder a sua visão. Sobre a apatia. Sobre desespero.
Eu poderia te contar sobre a insanidade se aproximando.
Sobre acordar assustado uma noite. Ou um dia. Vai saber.
Ver sua mãe chorando num canto da casa, com o nariz sangrando, arrebentado e roxo. Sobre ouvir os gemidos da sua irmã menor no quarto.
O caçula na sala.
Sobre saber onde o seu pai está.
Eu poderia te dizer como é ver a mulher que te deu a luz não falar mais, e ficar tricotando com o rosto inchado, o nariz partido, o sangue coagulado pendendo no rosto. Sobre seu irmão ser tão moleque e inocente que não sabe o que diabos tá acontecendo. E sobre como você o surra por isso.
Eu te diria que surrar o seu irmão menor é ótimo. Especialmente quando ninguém liga para isso.
Sobre como a minha irmã não dormia, sempre gemendo de dor e chorando e engasgando e gritando com um homem em cima dela, agindo como um animal, urrando e gozando e cuspindo, sem qualquer culpa ou amor.
Eu poderia te contar que, às vezes, esse homem era eu.
Sobre entrar no quarto dela e ver a mancha de sangue no chão. Na colcha. Sobre pulsos abertos, carne exposta. Sobre o olhar vazio.
Sobre só dar falta da faca depois.
Sobre não ligar para isso.
Sobre não precisar dela, porque você ainda tem um irmão menor.
Sobre uma mãe catatônica.
Sobre chegar ao limite.
Sobre uma disputa para decidir quem é o macho-alfa da matilha. Sobre o sangue jorrando da sua boca, os dentes partidos, a cara inchada, a mão quebrada, o olho roxo.
Eu poderia te contar como é vencer, a garganta do adversário rasgada ao meio, e a fome ser tão avassaladora que você devora a carne do perdedor.
Eu poderia te contar sobre tudo isso. Sobre o que é perder a sua humanidade. Sobre como é descer ao Inferno.
Mas eu acredito que, até agora, você já descobriu sozinho como é.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Cereja

Não.
O fim é próximo,
O silêncio
vira a esquina.
De meus pequenos passos
rumo ao incerto
um caminho descompasso
quebrado, disperso;
as pequenas sutilezas de como tenramente
comes tuas cerejas
o sussuro final
o singelo sussuro
a gota que cai mas ninguém ouviu -
não existe.
Chorei em silêncio.

Chorei em vão.

Agora se passam os dias.
Meses, anos, todo o milênio de minha
solidão.
Tanto faz, quem contou?
Fui aquele que andou ao teu lado
despercebido
como uma sombra incerta
nublada;
É findo.

Tive meus dias, glória berrada
O absurdo, meu escudo.
Agora sangro de armadura rasgada de flanela.
Agora fica o silêncio.

Silenciosa, tu come tuas cerejas.
E sonha com as próximas, em minha siesta.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Contos de 2005:

Domingo

Onze e quarenta, e ainda não consegui dormir. Já ouvi Blue Train duas vezes, assisti todo e qualquer programa disponível na TV, vasculhei minha coleção de livros, e até tentei ler algumas páginas de Última Saída do Brooklin, mas não passei do segundo parágrafo. O tédio me mata, o marasmo me sufoca. Jogado contra a parede e sacudido, um sentimento que não sei bem se é solidão ou inconformismo.

Alguns minutos antes da meia-noite, vista minha calça jeans, uma camiseta branca e uma jaqueta, e ganho as ruas. A noite está nojenta de úmida, e lança um vento gélido na cara. Sinto um arrepio, os pêlos de minha nuca se eriçam, por frio ou excitação. Dez quadras depois, avisto meu destino. Sinto o cheiro de urina e bebida do metrô Jabaquara, e as luzes ferem meus olhos.

Depois da meia-noite, especialmente nos fins-de-semana, aquele lugar é uma terra de ninguém: a escória da humanidade se agrupa ali, bebendo pinga e conhaque dos mais baratos, fumando cigarros paraguaios. Metade deles anda segurando canivetes no bolso, e aposto que alguns sentem o peso de um berro qualquer entre a calça e o corpo. Não pertenço a este lugar; sou mais medroso que qualquer um ali. Pego um cigarro e o acendo com meu isqueiro bic vagabundo. Onde estão, onde estão vocês, ó musas da minha hoite?

Ando alguns quarteirões a esmo até a ver: cabelos castanhos, estatura mediana, ombros pequenos; um olho castanho amendoado, o nariz, um traço delicado que lhe atravessa o rosto, boca de lábios finos e rosados, que tomam um vermelho agressivo pelo batom vagabundo; os seios são duas pêras que lhe pêndem firme no corpo. Usa uma blusinha curta sob uma jaqueta de couro, e uma mini-saia jeans curta, que revela um par de pernas firmes assustadas pelo frio ("ossos do ofício", penso). Oi, lindo, tá a fim de se divertir um pouco essa noite? Claro, por que não? Isso aê, meu lindo. Vambora, que você vai gostar. E quanto vai me custar pela diversão? Ah, trinta contos, uma hora, mais o quartinho do hotel pra nóis... Vamolá, te garanto que você nao vai si arrependê...

Começamos a andar até o Hotel For Lovers, na frente da estação rodoviária, e que de hotel mesmo não tem é porra nenhuma. Qual teu nome? Ah, cê pode me chamar como cê quisé. Paula, Ana, Helena... Perguntei qual é seu nome. T., ela responde. E você? Rafael. Ah, issu é nomi de anjo. É, e sorrio sem muita convicção, enquanto acendo um cigarro.

O tal Hotel For Lovers é uma bela duma pequena espelunca, decorada com um horrível papel de parede vermelho, que aluga seus quartos por hora. Quinze reais. O atendente é um negro de dois metros por três, e exibe um sorrisinho malicioso na cara enquanto me entrega a chave do quarto. Tenho vontade de vomitar na cara dele, regurgito de desprezo. Entramos no elevador até o terceiro andar, e sem o vento do lado de fora, posso pela primeira vez sentir o perfume forte e barato que T. usa. Ela segura minha mão, e sorri para mim. Lindo, você não vai si arrependê, mas ó, num gosto di sacanagem não. Que sacanagem? Você num parece o tipo, mas num quero sabe de tapa na cara nem nada dissu. E tem qui pagar antes, tá, meu lindo, você vai si diverti muito.

O quarto é uma mesinha com uma cadeira-e-mesa, uma cama com lençóis manchados e marcado por bitucas de cigarro. Um banheiro. Pego a carteira e tiro os trinta reais. Aê, brigadu, viu? Cê num vai se arrependê. Sento-me na cadeira e saco mais um cigarro. T. tira a jaqueta e se deita. Vem cá, vem. Tô fumando, fica tranqüila. Tô tranqüila, meu lindo. E se levanta. Dá um trago desse seu cigarro? e fuma. Cê é mesmo um anjo, sabia? Um anjinho sacaninha, e me dá um beijo. Seus lábios finos se deitam delicados nos meus, a respiração se descompassa, e eu sinto sua boca doce, e seu hálito de cigarros, e seu perfume barato de supermercado. T. se ergue e tira sua blusa; seus seios realmente não são maiores que duas pêras, mas o que me chama a atenção é o contraste entre sua pele branca e os mamilos rosados, miúdos, apontando na minha direção. Naquele momento, Deus, ela não pode ser uma puta; ela é um anjo, uma musa, o amor da minha vida.

Ela desce a saia e sua calcinha, sorrindo para mim. Seu corpo toma formas surreais, a visão me arranca suspiros contidos. A longa espera, maliciosa e doce, se mistura com a fumaça do cigarro na minha boca. Seus seios são duas pêras, pequenos como pêras, suculentos como pêras, doces como pêras. Tenho fome de pêra, vontade de pêra. Viveria e morreria pela pêra. Seus olhos amendoados, o sorriso... Ela sorri tanto! E seus lábios tremem. O sorriso lhe dói, ele sai forçado, lânguido. E é quando me dou conta que T. não é um anjo, não é uma musa; ela conta os segundos para sair dali, comprar um maço de cigarros com meu dinheiro e esperar seu próximo cliente. Não é ali que está minha redenção. T. se ajoelha à minha frente, abrindo minha calça. Cê vai ter a melhor hora da sua vida, meu lindo.

E enquanto ela abria sua boca, eu fechava meus olhos, e só desejava ir embora...

Passava das três quando finalmente voltei para casa. Depois que deixei o hotel com T., ela e seus recentemente ganhos trinta reais, andei sem rumo por algum tempo, até me sentir verdadeiramente cansado e derrotado. Me deitei nu, os olhos pedindo clemência, mas os pensamentos ainda voavam, milhões por segundo, pulsos elétricos sem fim. Os braços pendiam exaustos, segurando um último cigarro. A janela semi-aberta deixava um traço inexpressível de luz entrar no quarto, uma última lembrança da noite que tivera. As pernas começavam a formigar, a química em meu corpo se alterando os pulsos diminuindo tudo entrando num grau de letargia o sono se apoderando de meu corpo tudo triste tudo desconexo. Quando eu acordar, será domingo. O canal 4 estará passando algum seriado estúpido, ou um programa esportivo. Mulheres preparando o almoço de suas famílias, seus maridos levando os filhos para a feira, comendo pastéis. O movimento na rua lento, sereno, tranqüilo. Quando eu acordar, será domingo. O mundo ainda estará aqui, as mesmas pessoas, os mesmos empregos, as mesmas namoradas, tudo em seu devido lugar. Tudo estará do mesmo jeito que hoje. Só eu que, talvez, não esteja.

I

Sábado à noite, e o telefone não toca. Na verdade, ele não toca nunca. Meu telefone é um companheiro mudo. Um constante silêncio. E isso não é um fato mundano; é a prova de que não tenho amigos. "Nenhum homem é uma ilha". Eu sou, e, na verdade, não gosto disso. Todas as pessoas normais tem alguém em quem confiam plenamente, um parceiro para todas as horas. Mas eu não sou uma pessoa normal. Sou um desconfiado, um paranóico quanto a vida. Uma alma errante-cínica na grande metrópole.

A verdade é que não fui feito para este mundo. Não me sinto confortável em local algum, sempre deslocado, sempre fora de meu habitat. Talvez seja isso, deva eternamente me trancafiar em um quarto, entre livros, cigarros e discos de jazz. O pior, acredite, é que isso não me soa nada atrativo, é simplesmente o que me parece mais lógico, mais certo.

Minhas vãs esperanças ainda residem em que o telefone vá tocar, embora eu saiba que ele não vai. Eu simplesmente não consigo me adequar a essas coisas; todo o comportamento social, todo o exibicionismo, toda a cordialidade; aceitar o risco de pegar o metrô, descer em algum boteco e, sem nenhuma garantia prévia, tentar conversar, beber e me divertir. Deus, como eu gostaria disso, mas não consigo. Me mantenho acorrentado, preso a mesmice, fincado na melancolia.

M. tem charme, talento, e está próximo de realizar seus sonhos. T. está desaparecido, consumido por sabe-se lá o que. J. tem faculdade, um bom trabalho e está viajando para encontrar a namorada, uma garota bonita e inteligente qualquer. E D. tem uma vida simplesmente perfeita. Ele poderia comer a própria bosta e, ainda assim, tudo daria certo para ele. Sem fracassos, sem poréns. Eu sei, mas é fácil falar que tudo na nossa vida depende senão de nós mesmos, quando tudo joga ao nosso favor. Queria ver um filho da puta desses vir com ah mas tudo depende do seu esforço! se o canalha estivesse afundando na merda, com a bosta batendo no queixo,
engolindo moscas cada vez que tentasse abrir a boca para pedir socorro. Socorro, eu grito, mas as moscas sujas de merda entalam na minha garganta, e eu me calo.
Percebem a comicidade? Milhares de pessoas tem milhares de amigos à suas disposições; eu tenho quatro, e os odeio. Vejam bem, nao estou sendo injusto com eles; imagino que realmente gostem de mim. Mas gostam pelo que não sou. Gostam porque, perto de mim, eles são vencedores. O mais alto posto da cadeia alimentar. Houve um tempo em que não era menos ou mais afortunado; mas andava entre os meus, os marginais; heróis convictos da misantropia e do auto-desprezo. Mas mesmo esses se foram, tragados pela distância e pela conveniência. Me restam apenas quatro focos de ódio, dois cigarros e um telefone silencioso.

Às vezes, geralmente aos domingos, eu me recomponho e consigo ter breves momentos de fé. Graças a Deus, eles passam rápido...