Chega
em casa tarde da noite, o corpo cansado e torto dos pedidos do dia,
duas-conduções-ida-e-duas-conduções-volta, sacolejando por entre
outros corpos, o uníssono metropolitano do transporte público;
fígados e rins numa mesma vibração involuntária de acordo com o ranger dos trilhos do metrô. A cama se espalha num mar branco de
lençóis límpidos, a colcha e um edredom amarrotados,
desnecessários, impreteríveis.
Espreguiça-se lentamente,
sentindo cada osso estralando, músculos se repuxando, movimentos
perfeitos de uma máquina invisível; quem sabe brote um sorriso
inocente, despido de qualquer necessidade, de qualquer alegria
palpável – um reflexo motor aliado às tuas juntas.
Um
ronronar ao fundo, o estômago vazio. Duas dezenas de pensamentos
alheios, desejos incomensuráveis, batem-lhe ao fundo, a azia
retumbante, olhos injetados de sono; despe-se das roupas pesadas,
encharcadas do seu cotidiano como as roupas dum náufrago,
afundando-te mais e mais. Sua camisola, sua pantufa, seu pijama
favorito, sua pele e pelo – a única coisa, qualquer que ela seja,
que te conforte.
Espreguiça-se mais uma vez.
As
molas do colchão rangem quando se joga nele, um rebuliço abafado de
felicidade.
Deixa
exalar o cheiro imprudente do seu corpo; deixa que ele contamine seu
lençol, seu quarto, sua vida. Deixa que eu me embeba nele; dele se
derrama o leite perene de sua juventude, & dele nasce a peste
enraizada em meu peito.
Um
leve batucar dos seus dedos, melodiando os nossos dias, buscando um
cigarro fujão; um grito contido garganta abaixo, reverberando
silenciosamente, ecoando por seus dentes – extensões cálcicas &
figurativas do seu tão adorado esqueleto. Bílis convergida em
imagem, sonhos convertidos em bílis. Sua respiração descompassada,
pálpebras que se fecham em 24 frames por segundo. Meu anseio e teu
anseio, duas pinturas surrealistas, irascíveis e irrealizáveis.
Ossos
que estralam, bocas que se perdem; o azedume do cotidiano empapando
nossas línguas, silencioso e conspirador.
Sua
graça é sua brevidade, seu silêncio; a dor que sinto de você,
nunca dita, nunca tocada. Uma fragilidade quebradiça,
exoesquelética, coagulada e pustulenta. O teu câncer, meu bem; o
teu câncer.
Mãos
que se resvalam num conto. Clichês acumulados por anos e anos de
histórias. Corpos embalados por um ruído disforme, pela
visceralidade dos próprios corpos, aconchegando-se através dos
séculos, através dos dias, cortando-se ininterruptamente;
o
sangue verte como o leite, como a peste;
ossos
que espreguiçam-se em melodias orgânicas;
bílis
convertida em sonho convergindo-se à boca;
a
imprudência azeda do meu anseio;
&
você adormece, numa noite sem sonhos.