sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Batíamos frente a frente, amando milhares de quilômetros entre nós, cada um como uma punhalada, um golpe seco e firme a nos desafiar, a dizer desista, e eu desisti, e fui embora e me deitei com uma garrafa e é só. A dor é passageira e incômoda, e sempre volta vestida numa nova pele, uma carcaça de sorrisos e cheiros e sonhos e esperanças que se vão. Aí você acorda, lava o rosto, come uma torrada e pega o ônibus para o trabalho. Batíamos frente a frente amando milhares de quilômetros entre nós e desistimos e nos perdemos.
A vida é a arte do desencontro. Tecemos uma rede de impossibilidades com tamanha fraqueza que me comovo a ver os anos passando rápido e o rosto se deteriorando e o cabelo caindo imperceptivelmente banho após banho. Nos desencontramos porque não há nada mais a se fazer. É a poesia de existir, se perder, procurar em olhos turvos a beleza que já não reside em nós. Amar a infinitude do vazio, amar a boca que só aparece em sonhos. Desdenhar o que nos é real.
A vida é a arte do desencontro, e nela nos levamos. Naufragamos em tudo o que é belo e vão, os sonhos desentendidos meus e teus. O ventre plácido, e a imaginação que voa e se perde e de repente está em queda livre sete quilômetros até o chão e o desespero é só mais uma forma de transcender aquilo que chamamos de alma. Eu me perco em você e me perco em mim mesmo, e não choro a noite porque não há o que chorar. Já não existe redenção, ou existe e ela está escondida dentro do seu estômago e eu rezo que você me devore.
Eu não te amo. E, quando o amo, faço-o apenas por mim.
Nietzsche dizia que, numa relação, uma pessoa ama e a outra permite ser amada. Eu amo porque o fardo de ser amado é demasiadamente pesado, a responsabilidade pelo teu
corpo e pela tua alma eu não poderia suportar, então eu amo porque essa dor é apenas minha, e não a tua que eu tenho de carregar.
Mas não te amo, porque o amor tinha que ser autruísta e sincero e responsável, e Deus sabe que eu não sou a melhor pessoa desse mundo.
Sou só aquele que se perdeu de você.
O que se perdeu de si próprio.
A vida é a arte do desencontro.
E seguimos nos desviando, correndo para longe, passos largos, olhos à frente, pontos turísticos da nossa memória, a noite passa, olhamos as estrelas, eu tomei um café e fumei um cigarro, você só olhou e disse que meu mau-humor era lindo, minha zanga inocente, minha tristeza é aquilo que você ama sem compreender, como uma criança, e eu sinto teu pescoço tão perto, então eu acordo e não era um sonho não era um pesadelo; não era nada. Era aquilo que deveria ser, mas não é.
Somos apenas rostos familiares num álbum gigantesco de memórias insípidas o gosto amargo o fel empapando a língua. Somos todos desejos e nenhuma realização. Somos o abraço desperdiçado por entre os lençóis solitários. O perfume confuso. Eu te imagino aos meus braços, eu me desvincilho de você. Quem é você? Não sei. Apenas o sinto e me modifico e as entranhas se embaralham e teu nome é uma cifra de segredos e então me esqueço.
Te amo com a profundidade de um nada.
Não sou capaz de amar a mim mesmo.
Ou sou?
Apenas deixo que as coisas sigam, num rumo incerto, observo de longe e dou risada dos pequenos roedores se afogando na maré. Acaricio minha lágrima e a deixo pender como teus cabelos. Minha boca é a tua, meu desejo é o teu; ainda assim, dormimos sozinhos, separados pela distância de um trem, de um avião, de cinco passos tímidos até o teu portão: o que importa? Vivemos a ânsia, a sofreguidão, o regurgito, a morte iminente que espreita na esquina.
A vida é a arte do desencontro, e a vivemos com tal intensidade que sequer lembramos que poderíamos nos encontrar. Cada um com seu copo de cerveja. Cada um com seu cigarro. Cada um com sua tristeza. Cada um com seu desejo.
Adormece hoje, querida, e sonhe com nuvens de algodão-doce. Eu flutuo acima delas ao teu lado, mãos dadas bocas coladas desejos unidos.
Eu durmo embriagado com meu desejo do teu sonho.

2 comentários:

Andréia Dieter Reis disse...

É essa maravilha que tu faz que põe a gente doido. É isso, é muito bom, o tipo de coisa que, rangendo os dentes, a gente admite que gostaria de ter escrito antes. Pessoalmente, depois de ter lido bastante coisa de diversos tipos, isso se encaixa no meu gosto de uma forma bem peculiar, apaixonada e sedenta. Obrigada.

Míriam Maia disse...

Indescritível. E eu aqui chorando de montão. Que lindo de se ler.