segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Pequeno relato sobre meus dias de chuva

Não sei exatamente quando começou. Quer dizer, eu poderia dizer datas, hora aproximada, clima e umidade do ar, pressão atmosférica; todas essas informações inúteis que, no final das contas, não fazem diferença alguma. Poderia te contar tudo: como meu pai recolheu todos os animais do pasto, ou de como minha mãe juntou desajeitadamente as roupas no varal, enquanto eu colocava meus irmãos menores pra dentro de casa.
Poderia te contar como ficamos olhando os primeiros pingos de chuva cairem.
Como pensamos que era só mais uma tempestade.
Se você me perguntasse, e eu estivesse no clima de responder, eu bem que poderia te contar como aquela chuva se arrastou por horas. Como nós nos levantamos no dia seguinte, e a água ainda descia sem parar. Poderia falar sobre o noticiário matinal na tv, e como eles comentavam que, devido a uma anomalia inexplicável, uma mesma tempestade abatia todos os lugares do mundo, simultâneamente. Os metereologistas inconformados, em reuniões com cientistas e afins, tentando resolver o mistério. Sobre como as pessoas que habitavam regiões abatidas pela seca comemoravam o milagre. Sobre o trânsito infernal que assolava as grandes cidades do mundo.
Poderia te contar das enchentes. De como todo mundo, mais cedo ou mais tarde, parou de comemorar.
Se você perguntasse, eu poderia contar que continuou a chover aquele dia. E no seguinte.
De como reparamos, depois de umas duas semanas, que as plantações tinham alagado. E que as galinhas tinha morrido também. Da comida ficando escassa depois de algum tempo. De como eu e meu pai saimos de casa, no meio da tempestade infernal, e te descrever como ele retalhou cada vaca, cada porco, cada maldito animal que ainda não tivesse se afogado ou morrido de fome. De como voltamos com quilos de carne crua e sangrando para a cozinha. Do estoque desesperado em cada canto da geladeira. Armários. Caixas de isopor. Do plano para que não morressemos de fome.
Eu poderia dizer que nós não comiamos tanto assim. Poderia te contar do cheiro da carne apodrecendo. Dos vermes infestando a despensa.
De como os vermes não digeriam no meu estômago.
Poderia te contar de como parei de estudar os livros do colégio depois de um tempo. De como eu comecei a atrofiar e de como eu sentia falta do futebol. Das bobeiras do colégio. Dos desenhos de pintos no caderno das garotas. Da saudade que eu tinha da Analih. De como eu ficava puto por não ter transado com ela quando pude. De como eu me masturbava duas vezes por dia olhando a foto dela, e de como ela acabou gasta e fedendo a suor e uma merda de uma gozada que eu dei por acidente. De como eu incendiei a última lembrança que tinha da minha garota, e joguei pela janela, direto no lago novo ao redor de casa.
Dos programas evangélicos loucos na tv. Dos profetas de Deus clamando o fim do mundo, não pelo fogo, mas pela água. O segundo dilúvio. Dos saques desenfreados. Da onda de crime.
De como tudo isso parou quando não dava mais para sair de casa sem um barco.
Sobre perder a noção do tempo. Sobre não saber que dia é. Viver absorto numa chuva incessante.
Eu poderia contar para você sobre quando a televisão já não sintonizava mais nenhum canal. Sobre o rádio não ter mais música. Sobre o corte de energia. Viver a luz de velas. Não ter o que comer. Tédio. Ver as mesmas quatro pessoas o tempo todo, ou mofar sozinho trancado no quarto. Ler todo maldito livro que você pode ter na casa no escuro, e foder a sua visão. Sobre a apatia. Sobre desespero.
Eu poderia te contar sobre a insanidade se aproximando.
Sobre acordar assustado uma noite. Ou um dia. Vai saber.
Ver sua mãe chorando num canto da casa, com o nariz sangrando, arrebentado e roxo. Sobre ouvir os gemidos da sua irmã menor no quarto.
O caçula na sala.
Sobre saber onde o seu pai está.
Eu poderia te dizer como é ver a mulher que te deu a luz não falar mais, e ficar tricotando com o rosto inchado, o nariz partido, o sangue coagulado pendendo no rosto. Sobre seu irmão ser tão moleque e inocente que não sabe o que diabos tá acontecendo. E sobre como você o surra por isso.
Eu te diria que surrar o seu irmão menor é ótimo. Especialmente quando ninguém liga para isso.
Sobre como a minha irmã não dormia, sempre gemendo de dor e chorando e engasgando e gritando com um homem em cima dela, agindo como um animal, urrando e gozando e cuspindo, sem qualquer culpa ou amor.
Eu poderia te contar que, às vezes, esse homem era eu.
Sobre entrar no quarto dela e ver a mancha de sangue no chão. Na colcha. Sobre pulsos abertos, carne exposta. Sobre o olhar vazio.
Sobre só dar falta da faca depois.
Sobre não ligar para isso.
Sobre não precisar dela, porque você ainda tem um irmão menor.
Sobre uma mãe catatônica.
Sobre chegar ao limite.
Sobre uma disputa para decidir quem é o macho-alfa da matilha. Sobre o sangue jorrando da sua boca, os dentes partidos, a cara inchada, a mão quebrada, o olho roxo.
Eu poderia te contar como é vencer, a garganta do adversário rasgada ao meio, e a fome ser tão avassaladora que você devora a carne do perdedor.
Eu poderia te contar sobre tudo isso. Sobre o que é perder a sua humanidade. Sobre como é descer ao Inferno.
Mas eu acredito que, até agora, você já descobriu sozinho como é.

4 comentários:

Anônimo disse...

meldels...
ainda bem que minha imaginação não é fértil e eu não consigo pensar em nada sozinha.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
thiago mottanetto disse...

to boquiaberto!
é quase um "meninos eu vi" versão serial killer...

Anônimo disse...

nossa, me senti quase como lendo ensaio sobre a cegueira denovo.