quinta-feira, 12 de março de 2009

Fração

Ela sorriu discretamente, os olhos cintilantes de emoção. Minha boca encheu-se de saliva por um momento, somente para secar no seguinte. Durante uma fração de segundos, vislumbrei-me me aproximando dela, o primeiro gole de cerveja no boteco mais próximo, perguntando o que ela fazia da vida, respondendo a mesma pergunta, aproximando meu rosto pedindo pelo primeiro beijo como quem pede por absolvição. Me vi andando de mãos dada com ela, passando noites em claro, ora fazendo amor, devoto do corpo dela, ora discutindo e berrando, desviando de objetos inanimados voando em minha direção, vendo-a chorar e indo ao seu encontro para abraçá-la e dizer que vai ficar tudo bem. Comemorando minha promoção, redecorando o apartamento, descobrindo surpreso que ela está grávida, ficando mudo por meio minuto somente para rir descontrolado de alegria nos trinta segundos seguintes; vendo nosso filho aumentar a barriga e os seios dela, repetindo que ela continua linda (e ela continua), segurando sua mão e o choro enquanto ela berra pelas dores do parto; babando junto com outros pais babões na vitrine de exposição do berçário, levando-os, minha mulher e meu filho, para casa, repetindo "eu te amo".
Eu a vi e pensei em tudo isso, mas já era minha estação; então eu sai do vagão e subi apressado as escadas rolantes enquanto as portas do metrô se fechavam lentamente...

terça-feira, 3 de março de 2009

Michelli e as varizes

Ninguém poderia imaginar o destino trágico de Michelli nos anos que se seguiram à formatura. Eu mesmo, enquanto a olhava desfilar pelo pátio, uma lata de coca-cola na mão, brincando com o canudinho rosa passando pelos seus lábios, o olhar certeiro do tipo de garota que todo sujeito quer e que SABE disso, eu mesmo pensava "essa filadaputa vai longe", mas ela não iria longe, tudo ia acabar meio feio e triste e as pessoas, todo mundo, ficou meio perplexo e comentava baixinho "como pode?" e "porra, que bosta" enquanto eu ficava do lado da cafeteira, ouvindo tudo meio alheio, esperando achar alguém acendendo um cigarro para filar um, e eu pensava que esse era o tipo do troço que ninguém poderia imaginar.
O tempo que insistia em não passar causava-me uma ânsia, um buraco no estômago, reverbeando-se vazio exceto pelas duas xícaras de café, a abstinência, pessoas passando e me olhando de soslaio agitando suas cabeças levemente como num aceno, era um aceno, elas me reconheciam, e eu simulava "ois" e erguia o corpo fazendo-me de imponente, ainda que um tanto atrapalhado, ainda um tanto chocado, "ois para todos vocês", alguém de longe me vê, eu capto o olhar, ela vem em minha direção. Luisa, ou alguém que foi Luisa anos atrás, talvez a Luisa que envelheceu mais do que minha imaginação. Ela não nota que percebi sua aproximação, então resolvo sair, andar até a outra sala, mas ela vem atrás e é isso.
Michelli usava um vestido negro, imagino que até os joelhos; as flores brancas ao seu redor, os olhos fechados, enclausurados num rosto sereno e num sorriso pré-esboçado talvez escondido só pela seriedade da ocasião. "Puxa, mesmo depois desses anos todos, a Michelli continuava linda", eu disse. "É porque você não viu as varizes dela, Rafael".
"O que?"
"As varizes. Ela tinha - horríveis! Nunca mais usou um vestido depois da formatura. Acho que foi por causa da gravidez."
"A Michelli tem um filho?"
"Não. Teve um aborto no quarto ou quinto mês."
"Pô. Mas..."
"Eram horriveis mesmo. Enormes, azuis, era até meio nojento."
As varizes de Michelli. De repente, isso era um tópico importante a ser discutido. Não apenas importante - essencial, porque não muito depois de meu comentário sobre a beleza de Michelli, todos os antigos amigos do colegial comentavam sobre os vasos sangüineos entupidos dilatados das pernas dela.
Então saimos para o gramado. Escoltamos Michelli sem um sussurro sequer, embora a visão turva do azul de suas pernas embaralhando-se na córnea como uma rede, uma teia, e chegamos e baixamos e jogamos a terra e viramos para o outro lado e fomos embora. O estacionamento, a chave no contato, mão erguida para os outros como quem diz "a gente se vê", ambos sabendo que não é verdade, só nos encontraremos de novo, talvez, no próximo enterro, contanto que não seja o nosso próprio, e ligo o carro e o painel se enche de linhas azuis e o para-brisa, azul, e o rumo de casa idem.
E mesmo depois, mesmo agora, depois que tudo acabou, teoricamente pelo menos, eu me pego aqui, pensando e falando sobre as varizes de Michelli. Todo o resto é inútil, os anos de faculdade, como ela terminou num vestido negro triste quase sem sorriso, todo o percurso, não; o que importa são as varizes, como elas marcaram seu corpo, como elas marcam o meu, e como tudo isso não significa
Absolutamente
Nada