quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Jennifer Clotilde

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  Chega em casa tarde da noite, o corpo cansado e torto dos pedidos do dia, duas-conduções-ida-e-duas-conduções-volta, sacolejando por entre outros corpos, o uníssono metropolitano do transporte público; fígados e rins numa mesma vibração involuntária de acordo com o ranger dos trilhos do metrô. A cama se espalha num mar branco de lençóis límpidos, a colcha e um edredom amarrotados, desnecessários, impreteríveis.
  Espreguiça-se lentamente, sentindo cada osso estralando, músculos se repuxando, movimentos perfeitos de uma máquina invisível; quem sabe brote um sorriso inocente, despido de qualquer necessidade, de qualquer alegria palpável – um reflexo motor aliado às tuas juntas.
   Um ronronar ao fundo, o estômago vazio. Duas dezenas de pensamentos alheios, desejos incomensuráveis, batem-lhe ao fundo, a azia retumbante, olhos injetados de sono; despe-se das roupas pesadas, encharcadas do seu cotidiano como as roupas dum náufrago, afundando-te mais e mais. Sua camisola, sua pantufa, seu pijama favorito, sua pele e pelo – a única coisa, qualquer que ela seja, que te conforte.
   Espreguiça-se mais uma vez.
   As molas do colchão rangem quando se joga nele, um rebuliço abafado de felicidade.
   Deixa exalar o cheiro imprudente do seu corpo; deixa que ele contamine seu lençol, seu quarto, sua vida. Deixa que eu me embeba nele; dele se derrama o leite perene de sua juventude, & dele nasce a peste enraizada em meu peito.
   Um leve batucar dos seus dedos, melodiando os nossos dias, buscando um cigarro fujão; um grito contido garganta abaixo, reverberando silenciosamente, ecoando por seus dentes – extensões cálcicas & figurativas do seu tão adorado esqueleto. Bílis convergida em imagem, sonhos convertidos em bílis. Sua respiração descompassada, pálpebras que se fecham em 24 frames por segundo. Meu anseio e teu anseio, duas pinturas surrealistas, irascíveis e irrealizáveis.
   Ossos que estralam, bocas que se perdem; o azedume do cotidiano empapando nossas línguas, silencioso e conspirador.
   Sua graça é sua brevidade, seu silêncio; a dor que sinto de você, nunca dita, nunca tocada. Uma fragilidade quebradiça, exoesquelética, coagulada e pustulenta. O teu câncer, meu bem; o teu câncer.
   Mãos que se resvalam num conto. Clichês acumulados por anos e anos de histórias. Corpos embalados por um ruído disforme, pela visceralidade dos próprios corpos, aconchegando-se através dos séculos, através dos dias, cortando-se ininterruptamente;
   o sangue verte como o leite, como a peste;
   ossos que espreguiçam-se em melodias orgânicas;
   bílis convertida em sonho convergindo-se à boca;
   a imprudência azeda do meu anseio;

   & você adormece, numa noite sem sonhos.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Ensaio de Caramelo

   Sentada em um morrinho ainda orvalhado, buscando imagens e padrões indistintos nas nuvens, Caramelo fuma seu cigarro de menta. É a tarde de um dia frio e ligeiramente cinzento, do jeito que ela gosta. A brisa gelada bate de encontro com seu rosto, balançando seus cabelos castanhos para o lado, um sopro em sua nuca arrepia os pêlinhos loiros e imperceptíveis de seu corpo. Em sua imaginação, Caramelo parece, nesse exato momento, de óculos escuros num dia frio de agosto, sentada em um morrinho olhando nuvens carregadas, como uma atriz francesa, seu rosto blasé apenas a representação de uma alma em agitação, fervendo por dentro, protegida por um cachecol, lábios rachados; por entre os seios,  pendurando e se elevando no ritmo da respiração dela, cai uma medalhinha de São Tomás de Aquino, presente de sua avó 20 anos atrás, quando o mundo e a razão e a fé faziam nenhum sentido, e uma medalhinha era somente isso - uma medalhinha. Ela suporta o vento e o frio inabalável, numa beleza incauta que, nos anos vindouros, alguns vão perceber que ela sempre teve - ou não.
   Caramelo não se chamou Caramelo durante toda a vida, mas esse é seu nome agora. Ele (i.e., o nome) lhe foi dado por um namorado gringo, numa relação tempestuosa que durou sete meses, e deixou Caramelo com apenas três recordações: uma pequena cicatriz próxima ao seu umbigo, causada por um caco de vidro de uma garrafa de cerveja arremessada contra a parede, um coração partido e um novo nome. Durante uma noite agitada, o namorado gringo disse que ela tinha sabor de doce infantil, e batizou-a Caramelo num momento ecumênico na cama, desenhando um triângulo equilátero em sua testa com os dedos molhados de vodca. E, quando ele partiu, Caramelo decidiu que devia ser Caramelo para sempre, se não para lembrar aos outros o sabor que tinha, ao menos para lembrar a si mesma.
   Caramelo fica a olhar um horizonte quebrado por uma pequena torre de sino duma igrejinha qualquer, que na verdade não tem sino algum - é uma casca oca e vazia; simbólica, sem dúvida, mas sem razão para ser. Nenhum objetivo prático. Nas ultimas semanas, Caramelo tem se sentido assim também - se alguma vez houve uma razão para sua existência, uma grande linha de destino correndo para frente e para trás dela, essa linha foi cortada, ou se manchou com goles de café desperdiçados e cinzas de cigarro, cuja mira errada em busca do cinzeiro deixou-as a vagar pelo ar.
   Os pés, calçados num All-Star preto, sujo e já desbotando, se enterram entre a terra fofa, orvalhada, e ela sente falta da época de andar descalça, sentindo o barro penetrando por entre os dedos, gelado e pegajoso, escorrendo pelas dobras e preenchendo o vão que os risquinhos do pé criavam. Talvez fosse esse o motivo pelo qual Caramelo gostava de se sentar no morrinho. Aquele era o único lugar que conhecia no qual, às vezes, ela podia se reencontrar com aquele gosto da grama molhada contra as palmas da mão, o cheiro da chuva ricocheteando contra a terra quente, todo o aroma bucólico que existia apenas em sua cabeça.
   A imaginação dela dava voltas e se recriava constantemente, construindo um mundo glamouroso de artista cult, poetisa incompreendida, amazona urbana, amante fiel - Twiggy, Frida Kharlo, Sylvia Plath e Julieta, todas unidas numa única torrente de pensamento, num mesmo desejo inconstante de Caramelo, a garota doce, ser alguém que não ela mesma; de ser alguém marcada por qualquer coisa que não pela ferida aberta de conhecer-se como um favo de mel em estado de torpor. Ser uma escritora maldita ou a garota comum que se vê num relance pela porta do metrô e se apaixona, mas nunca, nunca mais, ser Caramelo.
   Ainda assim, mesmo buscando essa distância de ser ela própria, voltar a ser m#51#9# já não era mais possível. Voltar a ser quem era ela antes de ser quem ela é era renegar o que tinha aprendido, e a dor de aprender o que tinha aprendido, que era justamente o motivo de querer se transformar, criar uma nova identidade. Ser, novamente, quem ela foi (i.e., m#51#9#), era regredir a um ponto que não só ela não teria esse aprendizado, ou o desejo de ser outralguém, mas ser inocente quanto ao que aprendeu e, por isso mesmo, suscetível à passar pelas mesmas experiências, e aprender, novamente, as mesmas lições.
   As nuvens cinzas se condensavam, ficando mais próximas uma das outras, pedindo carinho e afeição. A primeira gota desse esbarrão cai próximo à sua mão, tomba e dá uma cambalhota, o que se revela um trágico acidente - o impacto desmembra a jovem gotinha, cujos bracinhos se esticam para fora de seu corpinho, jogados ao léu e perdidos por entre as folhas caidas. Seu tronquinho de gota abre-se, a coluninha rasga-a por dentro, expondo as minúsculas tripinhas de H2O pelo campo. Uma das perninhas, quão irônico!, lança-se ao ar, dá um mortal duplo, e aterrisa no dedo mindinho de Caramelo, que finalmente nota a iminete chuva. Uma tragédia precede uma tragédia, que precede uma tragédia, todas elas crescendo, umas sobre as outras, em tamanho e dramaticidade, e nenhuma delas tendo qualquer importância.
   Caramelo termina seu cigarro, e enterra os restos mortais na terra úmida, com a sola do seu All-Star. Foi um dia bonito, definitivamente. Levanta-se, dando tapinhas na bunda para tirar a terra e os pedaços de grama colados no tecido, e sai caminhando para fora do parque. Ao chegar na esquina, para em frente ao ponto de ônibus, e aguarda pela condução, odiosamente cheia e paquidermicamente lenta. Finalmente, chega à linha de metrô. Ao sentar-se no último lugar vazio, revirou sua bolsa e retirou uma cópia suja e maltrapilha de Jane Eyre. Abriu o livro na página marcada, e tentou retomar a leitura, mas era impossível; a cada solavanco, cada tremida do trem, Caramelo erguia sorrateiramente o rosto, procurando um olhar de desejo perdido em sua direção; aquele momento inegável de paixão avassaladora, que não nasce - explode! - num milésimo segundo de um dia qualquer.
   Desceu em sua estação virgem de ser vista.
   Subiu os degraus que levavam ao seu apartamento de dois em dois, para fingir que tinha pressa. Abriu a porta lentamente, com o pé no batente, procurando pelo outro morador. Schrödinger estava, como de costume, estirado no sofá, lambendo seus bracinhos pretos. Abriu a porta sem ter mais medo. Sentou-se ao seu lado, e esticou sua mão para acariciá-lo.
   Schrödinger arqueou a coluna, num momento de desconforto. No fundo, ele apreciava a companhia da garota com quem dividia o apartamento, mas lhe deixava constrangido a profusão dela, a necessidade que ela tinha com ele - e com mais ninguém, na maior parte do tempo - de demonstrar-lhe o afeto, essa coisa de tocar, tocar, tocar! Ele sabia que era querido; o pote de leite e a vasilha com comida - seca, é bem verdade, mas com um gostinho de atum que ele gostava um bocado -já lhe diziam o bastante. E ele não se importava de se aninhar por entre as pernas dela, debaixo da coberta, nas noites um pouco mais frias, como essa prometia ser, aliás. Mas, e esse era um ponto que Schrödinger não podia ressaltar o suficiente, isso não significava que precisasse passar o tempo todo juntos, ou se agarrando. Eles não tinham um bom acordo, afinal de contas? Ela lhe dava comida, leite e pernas quentinhas, e ele ficava ali, sendo schrödinger para ela. Para que complicar as coisas?
   Caramelo acariciou Schrödinger, e percebeu a coluna arqueada dele. O maldito gato estava arisco, de novo. Quão estúpido e ingrato ele poderia ser? Ela lhe dava não apenas carinho, mas comida; tirava-lhe leite da própria garrafinha, uma dessas garrafinhas de leite direto da fazenda, tendenciosamente natural e saudável e caro, e ainda deixava-o ficar se enroscando nas pernas dela, atazanando o sono por horas, até conseguir se acostumar novamente com a bola de pelo sissiricando pelos seus joelhos. E era assim que ele, Schrödinger, o Gato Cuzão, lhe agradecia - ficando todo iriçado e irritadiço por um simples cafuné.
   Ou seja, a vida de Caramelo era uma suscessão de incômodos que ela causava aos outros, que, em contrapartida, lhe devolviam o incômodo por serem incomodados; um círculo infinito de pequenos gestos que se tornavam grande gestos, terminando com garrafas quebradas, abandonos e miados resignados.
   Lentamente, ela se levantou do sofá, em direção à mesinha que sustentava seu notebook. Schrödinger, aproveitando a ausência da mão em suas costas, retesou as patas traseiras, deu um pulo gatosférico ao chão, e saiu num pinote violento rumo à cozinha. Se notou a mirabolante fuga do seu companheiro, Caramelo não deu sinal disso. Sua atenção estava na pasta de música, trocentas MP3s acumuladas, a maioria com tags fora de ordem, dificultando o acesso a elas. Por que ela nunca arrumava essas músicas no momento em que ela as baixava era algo que ela sempre pensava e que, como se pode notar, sempre postergava. Finalmente, achou o que procurava - um dos discos do M83 -, e colocou-o para tocar, a todo volume. Sabia que só poderia desfrutar de três músicas nesse tom; ao que começasse a quarta música, o gordo Sr. do Andar de Cima já teria avisado o síndico, que estaria à porta de seu apartamento - seu e de Schrödinger, que diabos! -, pronto para mais uma bronca, quem sabe mais uma multa? Tendo isso em mente, ela sabia que, ao final da terceira música, já teria de abaixar o volume, o que queria dizer que, claro, ela tinha de escolher bem as três primeiras músicas, e degustá-las no ápice de sua atenção, toda sua energia voltada para apenas nove ou dez minutos de puro deleite musical.
   Que tipo de vida ela levava, onde tudo o que ela consegue é isso? Dez minutos de música que ela gosta, num volume que ela aprecia, antes que tudo venha abaixo? Um gato ingrato, que se lambe libidinosamente em SEU sofá, que dorme entre SUAS pernas, e ainda se dá ao direito de agir como um garoto de quinze anos, fugindo de um compromisso mais sério, como se ela estivesse o condenando a ser seu amante eternamente? Uma pequena cicatriz avermelhada próxima ao seu umbigo, e um nome que se embrenhava por todo seu ser, como se seu batismo tardio tivesse condenado-a a infinitamente vagar pela consiência de quem ela foi, e de quem nunca mais será?
   Caramelo se afunda no sofá mais uma vez. Revira a bolsa, e retira o maço de cigarros, amassado pela superpopulação do ônibus. Dá uma tragada profunda, e vê os pequenos anéis de fumaça se formando pelos céus de seu apartamento, enquanto ela a expele de seus pulmões. As nuvens de fumaça se espalham, como se estivessem se dissipando, abrindo-se para o Sol. O pensamento que lhe ressoou o dia inteiro toma forma, cresce e lhe conforta.
   E, pela primeira vez, Caramelo sorri.

   Foi um belo dia, definitivamente.