quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Deméritos

Quando chovia, na época em que eu morava sozinho numa kitnet próxima ao largo Treze e mal saia de casa, eu tinha um pequeno ritual: arrastava a mesinha de centro - que na verdade era um compensado de madeira redondo e gasto - e uma cadeira para perto da janela, junto com o cinzeiro e uma xícara de café, geralmente já frio, e ficava sentado, observando o prédio vizinho se tornando uma imagem turva pelas gotas grossas e constantes.
Eu sequer reparava, na grande maioria das vezes, na construção deste cenário. Em um instante eu estava sentado na privada, lendo qualquer revista que tivesse arrumado no decorrer daquela semana, ou estirado no colchão-sofá da casa e, de repente, lá estava eu, sentado com um cigarro aceso pendendo entre os dedos, enquanto a cidade se enxarcava mais uma vez. Mesmo nesse instante, consiente de minha posição de observador-passivo-de-janelas, eu pouco podia fazer senão me deixar ali, às vezes exercendo uma força tremenda (ou era assim que me parecia) apenas para erguer o braço e dar um trago. E, quando a chuva diminuia, e a janela era apenas um reflexo embaçado da imagem que eu antes tinha, então só me restava arrastar os móveis (i.e, o compensado de madeira redondo e a cadeira) de volta aos seus lugares, atirar o resto de café gelado na pia, e acender mais um cigarro, no caso de haver mais um no maço - o que era bem raro em dias como aqueles.
Minha última namorada, de nome Giselle (data de término: 05 de dezembro de 2008, uma sexta-feira, às 21:35), costumava dizer que esse era o momento-chave de meu demérito enquanto homem; segundo ela, sentar-se em frente à janela chuvosa, envolto em cafeína e tabaco, era uma atitude perdedora, que demonstrava que eu era senão um moleque, jamais um homem. E, apesar de concordar com ela sobre minha fraqueza perante a vida, eu odiava o fato dela sempre classificá-la como "demérito". Eu detestava a palavra, a impertinência forçada no acento, "um demÉHrito", toda a pompa de nariz empinado e nojo enquanto a pronunciava. Odiava tanto, mas tanto, que me tornei um defensor do demérito: passei a buscá-lo em cada uma de minhas atitudes, em cada palavra proferida, em cada assinatura de documento; meu maior desejo, meu único propósito era fracassar em tudo, em ser senão um demérito de toda a expectativa, de todo a confiança, um demérito para todo o afeto já dispendiado por mim.
Parei de me barbear; a gilete cegou sozinha, abandonada no pequeno armário do banheiro, enferrujando diariamente. O cabelo cresceu, ensebado e crespo, coberto de caspas; um couro cabeludo cheio de feridas. As unhas ainda eram aparadas, ainda que num espaço de tempo muito maior do que antigamente.
Eventualmente, por mais irônico que o seja, fui bem-sucedido em ser mal-sucedido: em pouco tempo, ela se fora. Todos se foram, aliás. Pais, amigos, empregadores, cachorros, gatos, insetos - somente o demérito ficou, quieto, grudado em minha pele como um carrapato, uma mancha sanguessuga de insucessos e incertezas; uma pestilência leve, de cheiro acre, envolvendo todo o espaço ao meu redor. E ainda hoje, quando por acaso o ar me falta nos pulmões e, ofegando, minha respiração se torna mais forte, o demérito ainda exala, queimando minhas narinas, a lembrança de épocas onde eu podia observar a imagem turva da chuva, sem que a janela me parecesse um espelho côncavo d'alma.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

...e a sua vida poderia ser ainda pior...

É horr-rr-rrível ser gagaggg-g-gago! Tente xi-xi-xiing-gar alguém de "pu-pu-pupp-pp-pu-ti-ti-nnnha"! Perde todo o ef-ef-ef-ff-ff-feito.....

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Pequenos desvios de curso em alto-mar (ou como retorcer estômagos vazios com gim)

Ela cresceu. Tem 22 anos agora; as espinhas desincharam para dentro do seu rosto, os seios despontaram, e ela agora anda nua pelo quarto, o telefone na mão e o espelho refletindo o corpo que ela outrora se cansou de amaldiçoar. O corpo que ele admira, de longe, secreto e em silêncio.
E seguem alheios um ao outro, distância segura, um sorriso guardado e a cada suspiro a visão embaçada um do outro vem e volta, um único frame de desejo retorcido; a ausência do palpável, a discrição medida, ainda que imposta; a falta de ousar... mesmo que, em segredo, não durmam sem pensar um no outro, mesmo que seus sonhos sejam frequentemente conectado, construídos pela vontade mútua; ainda que os corpos sejam tocados na imaginação, os lábios, a pele macia e indistinta - tudo apagado pela voz estridente do despertador -; mesmo assim dentre eles não há nada que não seja platônico, que não seja guardado. Que não seja irrealizável.
Ambos são uma fagulha única perdida na escuridão.
E se embriagam um na falta do outro.
E cada beijo roubado é um sonho perdido entre os sons da cidade.

Eís o destino, paralelo e irreconciliável, dEle e dEla. Os passos ecoam e se perdem antes de chegarem aos ouvidos alheios. E não há nada, nem mesmo o amor - sobretudo o amor! - que possa apaziguar o tremor e o vazio que a falta do toque um do outro traz, ainda que nunca tenham se tocado.
Ainda que nunca tenham se conhecido.
Ainda que nunca irão se conhecer.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Capítulo 1 perdido - 1

Quando eu acordei, a única coisa que consegui focar era um facho de luz que atravessava uma fresta da janela, cortando o chão do quarto em dois, dividindo o território da cama e o da porta. Com a visão embaçada pela remela da noite, que grudava as duas pálpebras de cada olho pelos cantos, e uma confusão causada pelo torpor do sono ainda residente, fiquei a vaguear sem foco pelo quarto, enquanto ajeitava a cabeça no travesseiro, tentando resgatar na memória o que eu havia sonhado. Concentrado nesse devaneio, levei algum tempo para notar que sentia frio - estava nu e descoberto, e levei mais alguns segundos para perceber o ronco quase inaudível, quase agudo que ressoava às minhas costas, do outro lado da cama. Virei-me lentamente na direção do som, enquanto o sono se dissipava o suficiente para que eu me recordasse da noite anterior (não que eu tivesse esquecido - eu só não lembrei). Terminada a volta, estava frente a frente com uma garota loira, de não mais que vinte e dois anos, os cabelos esparramados pelo travesseiro. Ao contrário de mim, um fino lençol de algodão cobria o seu corpo também nu, embora eu pudesse ver através dele seus seios fartos e um tanto irregulares (o esquerdo era ligeiramente maior que o outro), as ancas largas, a coxa gorda e firme, o sexo coberto por pêlos ralos.
Deitei-me de costas, fixando o olhar no teto. Quando a Garota Loira acordou, não muito depois disso, ergueu-se apoiada no cotovelo e, ao constatar que eu também estava acordado, sorriu um "bom dia" e veio por cima de mim, passando a se apoiar no outro cotovelo e me deu um beijo. Achei isso um tanto piegas e/ou desnecessário - ela havia me abordado na noite anterior, pouco depois de entrar na balada. Não conversamos sequer dez minutos antes de começarmos a nos beijar e, após isso, nossa conversa tomou rumos práticos, do tipo...
"Vamos pro seu apartamento?"
"Eu moro com meus pais."
"Então vamos pro meu. Eu moro sozinho."
E...
"Você tem camisinha, ou a gente precisa parar na farmácia antes?"
E ainda...
"Pode deixar. Minha casa, eu pago o taxi."
Por isso, tendo em vista que após os primeiros dez minutos nossa relação tomou rumos extremamente práticos e físicos, um beijo de bom dia me pareceu um tanto forçado. Ainda assim, enquanto a Garota Loira se esparramava pela cama buscando a minha boca, seus seios roçaram levemente contra meu peito, os mamilos tocando levemente minha pele e pêlos, e não pude evitar em ficar excitado. Ao perceber minha ereção, a Garota Loira sorriu maliciosamente, e levou sua mão direita ao encontro de meu membro, enquanto voltava a me beijar. Me masturbava vigorosamente, enquanto eu apalpava seus seios e esticava o braço na tentativa de alcançar sua bunda gorda; logo ela estava em cima de mim, chupando meu pau, enquanto eu enfiava e tirava meu dedo do meio em sua buceta, lambendo-a toda vez que minha língua conseguia alcançá-la. Então ela se ergueu, aprisionou minha cintura com suas pernas, e começou a me cavalgar num ritmo assustadoramente rápido e descompassado, enquanto ofegava com os olhos semi-cerrados, erguendo a cabeça rumo ao teto. Eu, entretanto, mantinha meus olhos abertos, fitando seu pescoço, seus seios balançando ao alcance de minhas mãos, seu corpo rechonchudo unido ao meu, os pêlos pubianos como se fossem um só, e não consegui evitar o pensamento de que parecíamos duas naves acopladas por um corredor de metal, como num filme de ficção-científica. A Garota Loira então soltou um urro contido, largando seu corpo mole ainda ereto sobre o meu, tentando regularizar a respiração após o orgasmo. Eu a deitei e levei meu pau na direção da boca dela, sem me preocupar com sua dispnéia momentânea; ela começou a me chupar e, pouco antes do meu próprio orgasmo, retirei meu cacete de sua boca, comecei a me masturbar e, no grande momento, gozei em seus seios irregulares, ainda que muito agradáveis.
Ela tentou alcançar novamente meu pau com a boca, mas eu me deitei imediatamente, voltando a fitar meu teto branco. A Garota Loira, então, ergueu-se novamente pelo seu cotovelo, e começou a correr os dedos pelo meu peito, enroscando-os nos pêlos. Tentei sorrir, mas não obtive sucesso; assim, para não parecer desagradável, ergui o braço até o criado-mudo, peguei um cigarro e o acendi; voltei a minha posição original, sorvendo a fumaça enquanto ela voltava a enroscar seus dedos, presa em seus próprio pensamentos como eu nos meus.
Ela falou primeiro.
"Você se importa se eu tomar um banho?"
"De maneira nenhuma."
"Tô precisando"
"Eu sei", disse, meio sem-graça, como se tivesse acabado de tomar um ralho. "Me desculpa."
"Bobo!", enquanto se erguia para me beijar novamente, sujando-me com meu próprio esperma, "eu adorei."
"Bom."
Levantei-me da cama com o cigarro preso pelos lábios e, nu, cruzei a faixa de luz separatista, apanhei uma toalha supostamente limpa no armário, e entreguei a ela. A Garota Loira abriu a porta do quarto, suada e marcada pelo meu gozo, e cruzou o corredor rumo ao banheiro, balançando sua bunda larga, branca e apetitosa, enquanto eu a olhava, olhava e me perdia novamente nos meus pensamentos...

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Danken Donuts

Quando eu era criança, eu tinha esse tio Ernesto que era um sujeito realmente grande. Pesava uns 150 quilos fácil. Ou mais. Adorava rosquinhas, o malandro. Adorava outras coisas também, é claro - sujeitinho capaz de acabar com meia pizza enquanto meu pai comia dois pedaços. Ele comia o dobro do que me pai comia, no mesmo tempo, e meu pai era um sujeito grande. Não tão grande quanto tio Ernesto, claro, ou eu estaria falando dele agora. Meu pai pesava 90, 95 quilos. Algo por aí. Tio Ernesto chegava nos 150. E adorava rosquinhas. Juro que comia aquelas porcarias mais rápido e com mais prazer que qualquer outro adorador de rosquinhas do mundo - exceto, claro, um adorador de rosquinhas ainda maior que tio Ernesto, que já era bem grande, o coitado.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Pequenos fragmentos da vida alheia - II

(...)

"Qual é a boa?"
"Tem boa?"
"Teve ontem. Tava por aí - vagueando, eu disse. Vagueando."
"Eu já tive também. Foi louco - todos aqueles sinais brilhantes, estonteantes, ofuscando uns pedaços..."
"Sabe?"
"Sei."
"Ééééé." (...)

"Fernando... eu não te amo mais."
"Até que enfim!"

(...)

"Nós seguimos em frente, embora nosso amor, ou paixão, como quer que quiséssemos nomeá-lo, estivesse bem atrás de nós, parado e inconsiente. Então caminhávamos numa estrada de nonsense; a estação final, o desespero; como que mortos-vivos, como que sonâmbulos. Nos toques automáticos e frios que nos prezávamos a dar, a total ausência de estática fazia nossas peles se friccionarem uma com a outra, gerando não o calor mas tão somente a dor. Assim olhávamo-nos a uma distância colossal, pontos turvos no horizonte de nossas vidas, erguiamos ambos nossas lupas um contra o outro, duas crianças travessas, direcionando os raios de Sol rumo aos corpos inertes e ínfimos que antes se preenchiam, traçando a rota da aniquilação, ainda que inocente, ainda que..."
"Velho... de que CARALHOS você tá falando?"
"..."
"..."
"Nada não."
"..."
"..."
"Mais uma breja?"

(...)

"Papai do Céu, obrigado por mais um dia feliz com a minha familia feliz. Obrigado por toda a comida que o Senhor me deu, e pela escola e pelos meus amigos. Obrigado mesmo, Papai do Céu. Gostaria de pedir ao Senhor que o Senhor ajude meus pais que me comprassem um Megatron novo. É que ele é muuuuuito legal, Papai do Céu, e eu quero muito mesmo. Então, se o Senhor puder me ajudar, Papai do Céu, eu vou ficar muuuuuito feliz e vou rezar durante uma semana três ave-marias e três pai-nossos. Te amo, Papai do Céu. Amém."

(..)

"... Amém. Senhor, eu sei que já não rezo há algum tempo, mas eu creio que é nesses momentos de dificuldade e incerteza que todos nós acabamos nos voltando a Vós, quando recobramos a consiência da necessidade de Algo Superior em nossas vidas. Talvez o Senhor não exista de fato, Senhor, e ainda assim essa oração seria útil para eu repensar sobre tudo isso... Embora, claro, eu realmente CREIA em Vós, Senhor, mesmo não tendo sido um bom filho para conVosco, Senhor. Mas é que... bom, o Senhor deve saber, sendo Onisciente e tudo, mas... não que eu seja mesquinho, Senhor. Eu contribuo para com todas essas associações de caridade e nunca neguei esmola a qualquer um que parecesse MESMO necessitado, Senhor - e óbvio que não estou tentando comprá-Lo com isso, Senhor, eu nunca faria isso -, mas eu sei que isso vai parecer mesquinho, com todos os problemas do mundo, a economia corrompida, a fome e a guerra civil, e eu realmente espero que todos esses problemas se resolvam, Senhor, não é que eu ache que meus problemas sejam maiores que isso, mas é que, Senhor, ... ela é TÃO BOAZUDA! Eu mal consigo não olhar pra ela quando ela passa, Senhor, remexendo aquela montanha de traseiro, aquela imensidão de bunda! Então, Senhor, se eu puder comer ela, nem que seja SÓ UMA VEZ, Senhor, eu prometo que vou voltar a rezar todos os dias, Senhor, pro resto da minha vida. Amém."

(...)

"... e então o Príncipe Encantado beijou a Bela Adormecida que, desperta de seu terrível feitiço, se apaixonou perdidamente pelo belo Príncipe. Então eles se casaram e viveram felizes para sempre."
"Mãe?"
"Sim, querido?"
"Você não precisa mais contar histórias para eu dormir."
"Por que? Você não é mais o principezinho da mamãe?"
"Sou."
"Não é mais o encantadinho da mamãe?"
"Sou."
"O cuti-cuti?"
"Sou."
"Então?"
"..."
"..."
"Eu tenho 26 anos, mãe."

(...)

"Eu fico com a coleção do Mussolini."
"É ROSSELINI, sua mula!"
"Agora a coleção é minha, e eu chamo como quiser."
"Você nem sabe o nome do cara e quer levar a filmografia dele embora?"
"E vou pegar também o aparelho de DVD."
"Se você vai ficar com o aparelho de DVD, eu fico com a televisão."
"E o que eu vou fazer com um aparelho de DVD sem uma televisão?"
"Sei lá. Essa pica não é mais minha."
"..."
"..."
"Eu fico com a coleção do Roberto Carlos."
"Por mim..."
"E com isso..."
"Nem FODENDO você fica com os CDs do Led Zeppelin!"
"Fico sim."
"Você NÃO PODE levar Roberto Carlos E Led Zeppelin. Não tem sentido!"
"..."
"De mais a mais, você não pode simplesmente sair escolhendo coisas! Tem que ser uma pra mim, uma pra você."
"Eu quero os CDs do Led Zepellin!"
"Ah é? Ok, então eu fico com a sua casa da Barbie!"
"Pra que você quer a casa da Barbie?"
"Pra tacar fogo, não importa... é minha."
"Isso é injusto!"
"Se você quiser, eu troco ela pelo Led Zeppelin."
".... Não."
"Ok então. Por mim, suuuuuussas!"
"Quero sua coleção de carrinhos."
"Quero seus perfumes."
"A camisa oficial do Manchester."
"Todos os seus vestidos!"
"O autografo do Iron Maiden!"
"As fotos da sua irmã!"
"Vai se foder!"
"Vou melar elas todas, assim que você sair!"
"Seu animal!"
"Sua besta!"
"Você não presta!"
"Mussolini! Mussolini!"
"Broxa!"
"Chupeteira!"
"Cachorro!"
"Vadia!"
"..."
"..."
"..."
"..."
"Você fica sensual quando tá bravo."
"Você também.. tá gostosa, com todas essas caixas."
"Adoro quando você banca o macho."
"Adoro te ver chorando."
"Você assim, suado.."
"Sua vadia..."
"Cachorro..."

(...)

terça-feira, 9 de junho de 2009

De pequenas gags repetidas ad infinitum

Ilustração baseada no último texto.


Obra de Zé Otávio Zangirolami, o cérebro por trás da parte visual del Fante Laranja.
http://zehotavio.blogspot.com/

segunda-feira, 8 de junho de 2009

De pequenas gags repetidas ad infinitum

"Você sacou a piada?
Ok, lá vai de novo: - Imagine que você está por aí, sabe? Você trabalha e paga suas contas e compra alguma coisa pra cozinhar na quinta à noite e na sexta, se sobra dinheiro, você sai com seus amigos e bebe um pouco além do que devia, dançando que nem um desmiolado na pista oval e porcamente iluminada, ouvindo um ruído dissone que provavelmente é música; exceto, é claro, se você acaba indo nesse lugar realmente chique mas que tem preços exorbitantes então você pede uma dose de uísque que custa mais que toda aquela cerveja que você tomou no fim de semana anterior e fica girando as pedras de gelo no copo arruinando completamente o sabor da bebida mas você não dá muito a mínima porque a dose tem que durar um tempo enquanto você ouve essa bandinha fajuta de jazz e conversa com seus amigos e fica imaginando como a sua vida seria se você tivesse seu próprio mini-bar.
"Você sacou a piada?
Ok, lá vai de novo: - Seus dias são nada além da repetição infinita de tédio remorso culpa católica desperdício de energia vai-e-vem desnecessário e incompreensível hesitação perante o sexo oposto, masturbação diária e sem graça programas de tv enfadonhos livros que você compra mas nunca consegue ler telefonemas nunca retornados paixões platônicas e insônia, cabelos caindo pança aumentando banhos quentes demorados enquanto você olha seu pinto e tetas e vagina murchos tristes e inúteis e sonha com aventuras exóticas drinques caribenhos e sexo ardente com todos os astros de Hollywood, até seu cachorro começar a babar em cima de você e você acordar em mais uma manhã de domingo e mofar perdido num desespero silencioso, até adormecer novamente.
"Você sacou a piada?
Ok, lá vai de novo: - Quando você tinha quinze anos o mundo parecia fluir contra você. Seus pais eram monstros presos nos anos 60, fósseis vivos de uma era há muito superada, e a única coisa em que você podia crer era em seu ódio contra tudo que lhe era exterior. Então você começou a fumar maconha, fazer sexo com qualquer vulva que se mexesse, beber vinho barato e vomitar na rua deixando uma baba de almoço mal digerido bílis e azedume escorrer pela sua camiseta do Bad Religion, ler Nietzsche e condenar a existência de Deus e amaldiçoá-Lo, mesmo se declarando um ateu, e discutir alto contra a burguesia podre vigente da sua casa, e E então um dia você está se formando na faculdade, com o condomínio do seu apartamento vencendo no dia seguinte; há muito você parou com as drogas, e só existe uma mulher na sua vida agora, Aquela que te liga de uma em uma hora cobrando-lhe amor, atenção ou aquele jantar com Timmy, Jimmy, Billy e Rex no Château de l'Ennui, ainda que sua mente vagueie pela trepada selvagem em cima de sua mesa de trabalho com a loira boazuda da contabilidade, e é só aí você entende o verdadeiro significado de "uma vida fodida de merda".
"Sacou?
"Ainda não?
Ok, é tipo isso: - Tem uma vida lá fora, e ela é cheia de alegria e contentamento e esperança e superação. Em algum lugar, alguém sorri genuinamente. Um lugar onde sua vida talvez pudesse ser melhor, onde você lutaria por seus sonhos de infância até que eles se concretizassem. O sexo podia ser bom; amar poderia ser recíproco. Dinheiro não seria essencial, pois suas contas estariam sempre pagas. Os unicórnios seriam seus amigos, Jesus dançaria tango com Hobbits e o Arco-Íris cantaria canções para você com coro de passarinhos azuis e fadas e você esquiaria na montanha de marshmallow encantada nos alpes suíços.
"Pegou qual é?
Mais uma vez: - Dentre os bilhões de pessoas no mundo, toda a existência individual foi extinta em prol do pseudo exercício de um livre-arbítrio que é senão a teoria que nós próprio refutamos. Os aparelhos de TV ligados à noite, o som ensurdecedor das risadas de auditório, felicidade vendida em cápsulas azuis e em caixas enfeitadas com laços rosas, substancialidade errante e ermitã; reality shows embalando seus sonhos de fama e glória, o sentido da vida diluíndo-se em doses homeopáticas de inércia passividade egocentrismo religião pagã carros importados tênis de marca revistas de fofoca romances de auto-ajuda baladas de luzes convulsivas cabelos ensebados bandas de rock vendidas pelo NME rebeldia embalada para viagem artífices de um mundo asséptico branco leitoso arte fajuta e auto-referente em busca de idolatria humor politicamente correto comida natural atitudes sustentáveis roupas ecológicamente corretas vegetarianos abstêmios alcoólatras maníaco-depressivos glutões sedentários fumantes de pulmões necrosados crianças da geração saúde maconheiros viciados em prozac hippies babacas fãs de futebol leitores compulsivos escritores influenciados por Bukowski cineastas fracassados padres e pastores ditando a lei de Deus e a ausência Dele, o domínio completo de emoções há muito suprimidas a cervejinha do fim-de-semana adoradores do Cão e comediantes de stand-up, todos eles convergindo para uma brincadeira sem fim, a morte com a última gag mas ninguém pode ouvir pois todos estavam com seus fones de ouvido, o iPod no volume máximo.
"Você sacou a piada?

"

quinta-feira, 12 de março de 2009

Fração

Ela sorriu discretamente, os olhos cintilantes de emoção. Minha boca encheu-se de saliva por um momento, somente para secar no seguinte. Durante uma fração de segundos, vislumbrei-me me aproximando dela, o primeiro gole de cerveja no boteco mais próximo, perguntando o que ela fazia da vida, respondendo a mesma pergunta, aproximando meu rosto pedindo pelo primeiro beijo como quem pede por absolvição. Me vi andando de mãos dada com ela, passando noites em claro, ora fazendo amor, devoto do corpo dela, ora discutindo e berrando, desviando de objetos inanimados voando em minha direção, vendo-a chorar e indo ao seu encontro para abraçá-la e dizer que vai ficar tudo bem. Comemorando minha promoção, redecorando o apartamento, descobrindo surpreso que ela está grávida, ficando mudo por meio minuto somente para rir descontrolado de alegria nos trinta segundos seguintes; vendo nosso filho aumentar a barriga e os seios dela, repetindo que ela continua linda (e ela continua), segurando sua mão e o choro enquanto ela berra pelas dores do parto; babando junto com outros pais babões na vitrine de exposição do berçário, levando-os, minha mulher e meu filho, para casa, repetindo "eu te amo".
Eu a vi e pensei em tudo isso, mas já era minha estação; então eu sai do vagão e subi apressado as escadas rolantes enquanto as portas do metrô se fechavam lentamente...

terça-feira, 3 de março de 2009

Michelli e as varizes

Ninguém poderia imaginar o destino trágico de Michelli nos anos que se seguiram à formatura. Eu mesmo, enquanto a olhava desfilar pelo pátio, uma lata de coca-cola na mão, brincando com o canudinho rosa passando pelos seus lábios, o olhar certeiro do tipo de garota que todo sujeito quer e que SABE disso, eu mesmo pensava "essa filadaputa vai longe", mas ela não iria longe, tudo ia acabar meio feio e triste e as pessoas, todo mundo, ficou meio perplexo e comentava baixinho "como pode?" e "porra, que bosta" enquanto eu ficava do lado da cafeteira, ouvindo tudo meio alheio, esperando achar alguém acendendo um cigarro para filar um, e eu pensava que esse era o tipo do troço que ninguém poderia imaginar.
O tempo que insistia em não passar causava-me uma ânsia, um buraco no estômago, reverbeando-se vazio exceto pelas duas xícaras de café, a abstinência, pessoas passando e me olhando de soslaio agitando suas cabeças levemente como num aceno, era um aceno, elas me reconheciam, e eu simulava "ois" e erguia o corpo fazendo-me de imponente, ainda que um tanto atrapalhado, ainda um tanto chocado, "ois para todos vocês", alguém de longe me vê, eu capto o olhar, ela vem em minha direção. Luisa, ou alguém que foi Luisa anos atrás, talvez a Luisa que envelheceu mais do que minha imaginação. Ela não nota que percebi sua aproximação, então resolvo sair, andar até a outra sala, mas ela vem atrás e é isso.
Michelli usava um vestido negro, imagino que até os joelhos; as flores brancas ao seu redor, os olhos fechados, enclausurados num rosto sereno e num sorriso pré-esboçado talvez escondido só pela seriedade da ocasião. "Puxa, mesmo depois desses anos todos, a Michelli continuava linda", eu disse. "É porque você não viu as varizes dela, Rafael".
"O que?"
"As varizes. Ela tinha - horríveis! Nunca mais usou um vestido depois da formatura. Acho que foi por causa da gravidez."
"A Michelli tem um filho?"
"Não. Teve um aborto no quarto ou quinto mês."
"Pô. Mas..."
"Eram horriveis mesmo. Enormes, azuis, era até meio nojento."
As varizes de Michelli. De repente, isso era um tópico importante a ser discutido. Não apenas importante - essencial, porque não muito depois de meu comentário sobre a beleza de Michelli, todos os antigos amigos do colegial comentavam sobre os vasos sangüineos entupidos dilatados das pernas dela.
Então saimos para o gramado. Escoltamos Michelli sem um sussurro sequer, embora a visão turva do azul de suas pernas embaralhando-se na córnea como uma rede, uma teia, e chegamos e baixamos e jogamos a terra e viramos para o outro lado e fomos embora. O estacionamento, a chave no contato, mão erguida para os outros como quem diz "a gente se vê", ambos sabendo que não é verdade, só nos encontraremos de novo, talvez, no próximo enterro, contanto que não seja o nosso próprio, e ligo o carro e o painel se enche de linhas azuis e o para-brisa, azul, e o rumo de casa idem.
E mesmo depois, mesmo agora, depois que tudo acabou, teoricamente pelo menos, eu me pego aqui, pensando e falando sobre as varizes de Michelli. Todo o resto é inútil, os anos de faculdade, como ela terminou num vestido negro triste quase sem sorriso, todo o percurso, não; o que importa são as varizes, como elas marcaram seu corpo, como elas marcam o meu, e como tudo isso não significa
Absolutamente
Nada

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Segunda-Feira, 26 de Janeiro, 08h33.

Apertos de mão esperamos o elevador 12º andar oi bom dia por favor obrigado te vejo mais tarde. A mesa bagunçada, computador esperando, olha a hora, deixe o celular ali entre os papéis rascunhos rasbiscos relatórios esperando um crachá apagado e é isso que eu sou agora?, um crachá.
Então eu vou até a copa espero o café passar bom dia bom dia pra você também encho o copo de plástico vagabundo levo-o de volta à mesa e agora ele está vazio manchado de marrom e logo vai secar e vai feder e minha mesa vai parecer ainda mais nojenta.
Tic tac do relógio, tec tecs dos teclados de computador ao meu redor, um blablablá espalhado aleatório tímido irriquieto.
O momento se arrasta ad aeternum. É infinito e morno e envolvente e te lambe no pé da orelha passa a mão na sua bunda diz que te ama diz que te entende oi é a mamãe querido se achega aqui nos meus peitos e te dá de mamar é só a mamãe chupa aqui o leitinho e tec tec tec tec que quentinho! vem cá amorzinho e te pega no colo e alisa você te reconhece e eu te amo e eu te gosto e te derruba leite na boca vindo de um jorro.
Tec tec tec tec.
"Ei"
"Oi?"
"Vamo acordá? Não tô te pagando pra sonhá acordado."
"Sim sr."
"Bom menino. Meu docinho."
"Sim sr."
"Meu menino doce. É hora de trabalhar pro papai"
"Sim sr."
"Trabalha aqui, ó"
"Sim sr."

Welcome to the working week tectectectectectec