segunda-feira, 29 de setembro de 2008

In the stage she remains

Cala essa canção nojenta que ressoa
pelos mil e um cantos da minh'alma.
Já se passaram três anos desde a
última caminhada
E ainda ginga
Ainda ginga
Essa velha melodia.
Como você está
nesses dias
turbulentos?
A velha ferida ainda dói?
O pûs
Amargo
Estancado
Dele eu provei.
Dele eu ainda provarei.
Dele eu sorvi.
Dele eu sorveria eternamente.

E no entanto, três anos se passaram
desde a última caminhada.
Ainda tens o beijo que te enderecei,
mas guardei no bolso
junto ao maço de cigarros?

- O poeta está morto! Longa vida ao poeta!

Troquei o amor por um trago.
Afoguei todo ele numa poça de gim.
Se ainda dói?

Três anos desde a última caminhada.
Vimos folhas caindo, tombadas pelo outono;
todas cinzas e mortas
tudo apagado pelo tempo
tudo é escuro, surdo
- não; é impossível ouvir o som de tua viola...

E aí caminho por entre abismos
Louco solto abarrotado
de idéias consumido de sentimentos
o ódio me transborda
me preenche o amor!
Não
Não
Como poderia eu prosseguir?
Foi-se o tempo de que jovem acreditava
Deus está morto, mas antes morreu-se o poeta.
caí in-con-tá-veis vezes!
Ainda assim caminho por entre abismos
Louco solto abarrotado
de idéias consumido de sentimentos.

in the stage she remains
playing up her play

Florescemos em três anos.
Crescemos como erva-daninha.
Destruímos tudo ao nosso redor.
Consumimos cada pedaço de afeto como vermes
como vírus
com nojo e escárnio
E fomos embora.

Ainda assim, guardo uma das folhas mortas de outono.
Já está rota pelo tempo.
Cheiro-a duas vezes antes de deitar-me.
Não significa nada.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Pequeno relato sobre meus dias de chuva

Não sei exatamente quando começou. Quer dizer, eu poderia dizer datas, hora aproximada, clima e umidade do ar, pressão atmosférica; todas essas informações inúteis que, no final das contas, não fazem diferença alguma. Poderia te contar tudo: como meu pai recolheu todos os animais do pasto, ou de como minha mãe juntou desajeitadamente as roupas no varal, enquanto eu colocava meus irmãos menores pra dentro de casa.
Poderia te contar como ficamos olhando os primeiros pingos de chuva cairem.
Como pensamos que era só mais uma tempestade.
Se você me perguntasse, e eu estivesse no clima de responder, eu bem que poderia te contar como aquela chuva se arrastou por horas. Como nós nos levantamos no dia seguinte, e a água ainda descia sem parar. Poderia falar sobre o noticiário matinal na tv, e como eles comentavam que, devido a uma anomalia inexplicável, uma mesma tempestade abatia todos os lugares do mundo, simultâneamente. Os metereologistas inconformados, em reuniões com cientistas e afins, tentando resolver o mistério. Sobre como as pessoas que habitavam regiões abatidas pela seca comemoravam o milagre. Sobre o trânsito infernal que assolava as grandes cidades do mundo.
Poderia te contar das enchentes. De como todo mundo, mais cedo ou mais tarde, parou de comemorar.
Se você perguntasse, eu poderia contar que continuou a chover aquele dia. E no seguinte.
De como reparamos, depois de umas duas semanas, que as plantações tinham alagado. E que as galinhas tinha morrido também. Da comida ficando escassa depois de algum tempo. De como eu e meu pai saimos de casa, no meio da tempestade infernal, e te descrever como ele retalhou cada vaca, cada porco, cada maldito animal que ainda não tivesse se afogado ou morrido de fome. De como voltamos com quilos de carne crua e sangrando para a cozinha. Do estoque desesperado em cada canto da geladeira. Armários. Caixas de isopor. Do plano para que não morressemos de fome.
Eu poderia dizer que nós não comiamos tanto assim. Poderia te contar do cheiro da carne apodrecendo. Dos vermes infestando a despensa.
De como os vermes não digeriam no meu estômago.
Poderia te contar de como parei de estudar os livros do colégio depois de um tempo. De como eu comecei a atrofiar e de como eu sentia falta do futebol. Das bobeiras do colégio. Dos desenhos de pintos no caderno das garotas. Da saudade que eu tinha da Analih. De como eu ficava puto por não ter transado com ela quando pude. De como eu me masturbava duas vezes por dia olhando a foto dela, e de como ela acabou gasta e fedendo a suor e uma merda de uma gozada que eu dei por acidente. De como eu incendiei a última lembrança que tinha da minha garota, e joguei pela janela, direto no lago novo ao redor de casa.
Dos programas evangélicos loucos na tv. Dos profetas de Deus clamando o fim do mundo, não pelo fogo, mas pela água. O segundo dilúvio. Dos saques desenfreados. Da onda de crime.
De como tudo isso parou quando não dava mais para sair de casa sem um barco.
Sobre perder a noção do tempo. Sobre não saber que dia é. Viver absorto numa chuva incessante.
Eu poderia contar para você sobre quando a televisão já não sintonizava mais nenhum canal. Sobre o rádio não ter mais música. Sobre o corte de energia. Viver a luz de velas. Não ter o que comer. Tédio. Ver as mesmas quatro pessoas o tempo todo, ou mofar sozinho trancado no quarto. Ler todo maldito livro que você pode ter na casa no escuro, e foder a sua visão. Sobre a apatia. Sobre desespero.
Eu poderia te contar sobre a insanidade se aproximando.
Sobre acordar assustado uma noite. Ou um dia. Vai saber.
Ver sua mãe chorando num canto da casa, com o nariz sangrando, arrebentado e roxo. Sobre ouvir os gemidos da sua irmã menor no quarto.
O caçula na sala.
Sobre saber onde o seu pai está.
Eu poderia te dizer como é ver a mulher que te deu a luz não falar mais, e ficar tricotando com o rosto inchado, o nariz partido, o sangue coagulado pendendo no rosto. Sobre seu irmão ser tão moleque e inocente que não sabe o que diabos tá acontecendo. E sobre como você o surra por isso.
Eu te diria que surrar o seu irmão menor é ótimo. Especialmente quando ninguém liga para isso.
Sobre como a minha irmã não dormia, sempre gemendo de dor e chorando e engasgando e gritando com um homem em cima dela, agindo como um animal, urrando e gozando e cuspindo, sem qualquer culpa ou amor.
Eu poderia te contar que, às vezes, esse homem era eu.
Sobre entrar no quarto dela e ver a mancha de sangue no chão. Na colcha. Sobre pulsos abertos, carne exposta. Sobre o olhar vazio.
Sobre só dar falta da faca depois.
Sobre não ligar para isso.
Sobre não precisar dela, porque você ainda tem um irmão menor.
Sobre uma mãe catatônica.
Sobre chegar ao limite.
Sobre uma disputa para decidir quem é o macho-alfa da matilha. Sobre o sangue jorrando da sua boca, os dentes partidos, a cara inchada, a mão quebrada, o olho roxo.
Eu poderia te contar como é vencer, a garganta do adversário rasgada ao meio, e a fome ser tão avassaladora que você devora a carne do perdedor.
Eu poderia te contar sobre tudo isso. Sobre o que é perder a sua humanidade. Sobre como é descer ao Inferno.
Mas eu acredito que, até agora, você já descobriu sozinho como é.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Cereja

Não.
O fim é próximo,
O silêncio
vira a esquina.
De meus pequenos passos
rumo ao incerto
um caminho descompasso
quebrado, disperso;
as pequenas sutilezas de como tenramente
comes tuas cerejas
o sussuro final
o singelo sussuro
a gota que cai mas ninguém ouviu -
não existe.
Chorei em silêncio.

Chorei em vão.

Agora se passam os dias.
Meses, anos, todo o milênio de minha
solidão.
Tanto faz, quem contou?
Fui aquele que andou ao teu lado
despercebido
como uma sombra incerta
nublada;
É findo.

Tive meus dias, glória berrada
O absurdo, meu escudo.
Agora sangro de armadura rasgada de flanela.
Agora fica o silêncio.

Silenciosa, tu come tuas cerejas.
E sonha com as próximas, em minha siesta.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Contos de 2005:

Domingo

Onze e quarenta, e ainda não consegui dormir. Já ouvi Blue Train duas vezes, assisti todo e qualquer programa disponível na TV, vasculhei minha coleção de livros, e até tentei ler algumas páginas de Última Saída do Brooklin, mas não passei do segundo parágrafo. O tédio me mata, o marasmo me sufoca. Jogado contra a parede e sacudido, um sentimento que não sei bem se é solidão ou inconformismo.

Alguns minutos antes da meia-noite, vista minha calça jeans, uma camiseta branca e uma jaqueta, e ganho as ruas. A noite está nojenta de úmida, e lança um vento gélido na cara. Sinto um arrepio, os pêlos de minha nuca se eriçam, por frio ou excitação. Dez quadras depois, avisto meu destino. Sinto o cheiro de urina e bebida do metrô Jabaquara, e as luzes ferem meus olhos.

Depois da meia-noite, especialmente nos fins-de-semana, aquele lugar é uma terra de ninguém: a escória da humanidade se agrupa ali, bebendo pinga e conhaque dos mais baratos, fumando cigarros paraguaios. Metade deles anda segurando canivetes no bolso, e aposto que alguns sentem o peso de um berro qualquer entre a calça e o corpo. Não pertenço a este lugar; sou mais medroso que qualquer um ali. Pego um cigarro e o acendo com meu isqueiro bic vagabundo. Onde estão, onde estão vocês, ó musas da minha hoite?

Ando alguns quarteirões a esmo até a ver: cabelos castanhos, estatura mediana, ombros pequenos; um olho castanho amendoado, o nariz, um traço delicado que lhe atravessa o rosto, boca de lábios finos e rosados, que tomam um vermelho agressivo pelo batom vagabundo; os seios são duas pêras que lhe pêndem firme no corpo. Usa uma blusinha curta sob uma jaqueta de couro, e uma mini-saia jeans curta, que revela um par de pernas firmes assustadas pelo frio ("ossos do ofício", penso). Oi, lindo, tá a fim de se divertir um pouco essa noite? Claro, por que não? Isso aê, meu lindo. Vambora, que você vai gostar. E quanto vai me custar pela diversão? Ah, trinta contos, uma hora, mais o quartinho do hotel pra nóis... Vamolá, te garanto que você nao vai si arrependê...

Começamos a andar até o Hotel For Lovers, na frente da estação rodoviária, e que de hotel mesmo não tem é porra nenhuma. Qual teu nome? Ah, cê pode me chamar como cê quisé. Paula, Ana, Helena... Perguntei qual é seu nome. T., ela responde. E você? Rafael. Ah, issu é nomi de anjo. É, e sorrio sem muita convicção, enquanto acendo um cigarro.

O tal Hotel For Lovers é uma bela duma pequena espelunca, decorada com um horrível papel de parede vermelho, que aluga seus quartos por hora. Quinze reais. O atendente é um negro de dois metros por três, e exibe um sorrisinho malicioso na cara enquanto me entrega a chave do quarto. Tenho vontade de vomitar na cara dele, regurgito de desprezo. Entramos no elevador até o terceiro andar, e sem o vento do lado de fora, posso pela primeira vez sentir o perfume forte e barato que T. usa. Ela segura minha mão, e sorri para mim. Lindo, você não vai si arrependê, mas ó, num gosto di sacanagem não. Que sacanagem? Você num parece o tipo, mas num quero sabe de tapa na cara nem nada dissu. E tem qui pagar antes, tá, meu lindo, você vai si diverti muito.

O quarto é uma mesinha com uma cadeira-e-mesa, uma cama com lençóis manchados e marcado por bitucas de cigarro. Um banheiro. Pego a carteira e tiro os trinta reais. Aê, brigadu, viu? Cê num vai se arrependê. Sento-me na cadeira e saco mais um cigarro. T. tira a jaqueta e se deita. Vem cá, vem. Tô fumando, fica tranqüila. Tô tranqüila, meu lindo. E se levanta. Dá um trago desse seu cigarro? e fuma. Cê é mesmo um anjo, sabia? Um anjinho sacaninha, e me dá um beijo. Seus lábios finos se deitam delicados nos meus, a respiração se descompassa, e eu sinto sua boca doce, e seu hálito de cigarros, e seu perfume barato de supermercado. T. se ergue e tira sua blusa; seus seios realmente não são maiores que duas pêras, mas o que me chama a atenção é o contraste entre sua pele branca e os mamilos rosados, miúdos, apontando na minha direção. Naquele momento, Deus, ela não pode ser uma puta; ela é um anjo, uma musa, o amor da minha vida.

Ela desce a saia e sua calcinha, sorrindo para mim. Seu corpo toma formas surreais, a visão me arranca suspiros contidos. A longa espera, maliciosa e doce, se mistura com a fumaça do cigarro na minha boca. Seus seios são duas pêras, pequenos como pêras, suculentos como pêras, doces como pêras. Tenho fome de pêra, vontade de pêra. Viveria e morreria pela pêra. Seus olhos amendoados, o sorriso... Ela sorri tanto! E seus lábios tremem. O sorriso lhe dói, ele sai forçado, lânguido. E é quando me dou conta que T. não é um anjo, não é uma musa; ela conta os segundos para sair dali, comprar um maço de cigarros com meu dinheiro e esperar seu próximo cliente. Não é ali que está minha redenção. T. se ajoelha à minha frente, abrindo minha calça. Cê vai ter a melhor hora da sua vida, meu lindo.

E enquanto ela abria sua boca, eu fechava meus olhos, e só desejava ir embora...

Passava das três quando finalmente voltei para casa. Depois que deixei o hotel com T., ela e seus recentemente ganhos trinta reais, andei sem rumo por algum tempo, até me sentir verdadeiramente cansado e derrotado. Me deitei nu, os olhos pedindo clemência, mas os pensamentos ainda voavam, milhões por segundo, pulsos elétricos sem fim. Os braços pendiam exaustos, segurando um último cigarro. A janela semi-aberta deixava um traço inexpressível de luz entrar no quarto, uma última lembrança da noite que tivera. As pernas começavam a formigar, a química em meu corpo se alterando os pulsos diminuindo tudo entrando num grau de letargia o sono se apoderando de meu corpo tudo triste tudo desconexo. Quando eu acordar, será domingo. O canal 4 estará passando algum seriado estúpido, ou um programa esportivo. Mulheres preparando o almoço de suas famílias, seus maridos levando os filhos para a feira, comendo pastéis. O movimento na rua lento, sereno, tranqüilo. Quando eu acordar, será domingo. O mundo ainda estará aqui, as mesmas pessoas, os mesmos empregos, as mesmas namoradas, tudo em seu devido lugar. Tudo estará do mesmo jeito que hoje. Só eu que, talvez, não esteja.

I

Sábado à noite, e o telefone não toca. Na verdade, ele não toca nunca. Meu telefone é um companheiro mudo. Um constante silêncio. E isso não é um fato mundano; é a prova de que não tenho amigos. "Nenhum homem é uma ilha". Eu sou, e, na verdade, não gosto disso. Todas as pessoas normais tem alguém em quem confiam plenamente, um parceiro para todas as horas. Mas eu não sou uma pessoa normal. Sou um desconfiado, um paranóico quanto a vida. Uma alma errante-cínica na grande metrópole.

A verdade é que não fui feito para este mundo. Não me sinto confortável em local algum, sempre deslocado, sempre fora de meu habitat. Talvez seja isso, deva eternamente me trancafiar em um quarto, entre livros, cigarros e discos de jazz. O pior, acredite, é que isso não me soa nada atrativo, é simplesmente o que me parece mais lógico, mais certo.

Minhas vãs esperanças ainda residem em que o telefone vá tocar, embora eu saiba que ele não vai. Eu simplesmente não consigo me adequar a essas coisas; todo o comportamento social, todo o exibicionismo, toda a cordialidade; aceitar o risco de pegar o metrô, descer em algum boteco e, sem nenhuma garantia prévia, tentar conversar, beber e me divertir. Deus, como eu gostaria disso, mas não consigo. Me mantenho acorrentado, preso a mesmice, fincado na melancolia.

M. tem charme, talento, e está próximo de realizar seus sonhos. T. está desaparecido, consumido por sabe-se lá o que. J. tem faculdade, um bom trabalho e está viajando para encontrar a namorada, uma garota bonita e inteligente qualquer. E D. tem uma vida simplesmente perfeita. Ele poderia comer a própria bosta e, ainda assim, tudo daria certo para ele. Sem fracassos, sem poréns. Eu sei, mas é fácil falar que tudo na nossa vida depende senão de nós mesmos, quando tudo joga ao nosso favor. Queria ver um filho da puta desses vir com ah mas tudo depende do seu esforço! se o canalha estivesse afundando na merda, com a bosta batendo no queixo,
engolindo moscas cada vez que tentasse abrir a boca para pedir socorro. Socorro, eu grito, mas as moscas sujas de merda entalam na minha garganta, e eu me calo.
Percebem a comicidade? Milhares de pessoas tem milhares de amigos à suas disposições; eu tenho quatro, e os odeio. Vejam bem, nao estou sendo injusto com eles; imagino que realmente gostem de mim. Mas gostam pelo que não sou. Gostam porque, perto de mim, eles são vencedores. O mais alto posto da cadeia alimentar. Houve um tempo em que não era menos ou mais afortunado; mas andava entre os meus, os marginais; heróis convictos da misantropia e do auto-desprezo. Mas mesmo esses se foram, tragados pela distância e pela conveniência. Me restam apenas quatro focos de ódio, dois cigarros e um telefone silencioso.

Às vezes, geralmente aos domingos, eu me recomponho e consigo ter breves momentos de fé. Graças a Deus, eles passam rápido...