quarta-feira, 21 de agosto de 2013

TEM ESSA PARTE DO MEU CORAÇÃO QUE CANTA E CANTA


                                        ....... E essa é meio que toda a história. Bom, quer dizer, essa é uma parte da história, tendo em vista que a história continua, quer dizer, não é como se a mina tivesse morrido logo após o fim da história nem nada, foi só uma coisa, tipo, vamos dizer assim, é a minha história, né, não a história dela, e eu tou te contando uma parte dessa história e aí é essa parte que realmente importa e por isso a parte dela ou ela própria enquanto personagem da minha história continua mas continua pra ela mesma ou pra ela enquanto personagem da história de outro cara, mas não na minha.
Mas isso é muito louco, se você para pra pensar, quer dizer, ela foi alguém fisicamente estável na minha história, ela foi tipo, ela foi uma coleção de átomos e moléculas e órgãos na minha vida e agora ela é, bom, ela não é mais isso. Bom, ela é, mas não aqui não agora. Agora ela é uma personagem. Entende o que eu quero dizer? A presença física dela me é agora algo irrelevante – na verdade, a presença física dela me seria ultrajante, mas não não é bem disso que eu tou falando – tou dizendo assim que, enquanto persona na minha vida ela não existe fisicamente. Pô, você sacou, né? Não é tão difícil assim, é?
E isso faz a gente pensar. Quer dizer, se liga: nesse exato momento, é muito possível, eu diria até que na verdade ao contrário, é quase IMPOSSÍVEL que ela mesma não esteja em tipo algum outro bar, com uma amiga, uma amiga tipo assim você, né?, e ela não teja também contando essa história pra ela, a amiga, só que não é a mesma história, saca? Não é, porque nela EU sou só um personagem. Eu não existo mais na vida dela, e aí... e aí...
Então, tipo, quer dizer, a vida é meio que só, ó, calmaí, acompanha meu raciocínio, olha; quantos relacionamentos você já teve? E não tou dizendo assim nem relacionamentos sérios só, aqueles que duram anos e anos e todo o lance traumático de conhecer a família e fazer votos e esquecer coisas na casa dele(a) e depois quando tudo termina você ter que só, tipo, simplesmente deixar essas coisas para lá e nunca mais ir buscá-las e aliás nem mesmo comprar outras coisas novas que substituam aquelas que você deixou pra lá porque o simples fato de comprar as mesmas coisas novas e/ou de novo é insuportavelmente doloroso, mas aqueles relacionamentos que englobam tudo, até tipo sei lá um carinha que você viu uma vez na balada e vocês trocaram olhares e um sorrisinho meio bêbado safado mas os dois vacilaram porque talvez não tivessem bêbados o suficiente e vocês nunca então nem chegaram a tipo trocar uma palavrinha um com o outro nem nada, sabe? Isso conta como um relacionamento também, é inegável, quer dizer, em algum sentido vocês afetaram a vida um do outro, sabe? Agora pensa que esse relacionamento, e todos os outros, tipo, eles são só ficção agora. Entende? Esse carinha com quem você nunca trocou uma palavra conta pros amigos do dia que ele tava nessa balada e tinha essa garota linda que olhou pra ele mas ele não fez nada e pronto – você deixa de ser você tipo só-e-apenas-você-no-sentido-físico-e-real pra se tornar uma personagem na narrativa da vida desse sujeito com quem você nunca falou e de quem você sequer saber o nome. E não para por aí: todo relacionamento que você já teve e provavelmente todo relacionamento que você terá, eles são só a base pra que, futuramente, uma história seja extraída deles (i.e., dos relacionamentos). Então, quer dizer, é como se a vida só existisse pra ser não-vida, pra ser ficção. Ou seja, é meio que a nossa sina sermos inevitavelmente transformados em personagens das narrativas de outras pessoas, as pessoas que nos abandonaram ou que nós abandonamos, e tudo é só isso quer dizer, pensa bem, nós somos apenas personagens. Agora pensa comigo, só pensa comigo um minutinho, tá? porque veja bem, se nós somos inevitavelmente personagens na narrativa de outras pessoas, o que nos garante que as próprias narrativas das outras pessoas não são elas próprias só personagens na narrativa de uma terceira pessoa, tipo como uma boneca russa, uma história dentro de uma história dentro de uma história todas elas sendo construídas a partir da desgraça alheia, do fato de que nós, como pessoas, somos irremediavelmente falhos e egoístas e egocêntricos e tudo o que tá ao nosso redor é só material de destruição em potencial e não é sequer nossa culpa se você para pra pensar porque no fundo no fundo a gente é apenas isso apenas personagens da historiazinha que outra pessoa tá contando e tá tudo fora do nosso alcance e a gente apenas ACHA que tem algum controle sobre as coisas o livre-arbítrio é só uma palavra composta tipo duas palavras com um hífen no meio que por acaso escritas e/ou ditas assim tem um significado semântico único mas não significam realmente nada porque isso é no fim das contas irreal e a gente apenas segue o fluxo sem a menor capacidade de conseguir mudar efetivamente nada porque a gente é isso personagens no livro de alguém condenados a repetir os mesmo erros mais uma vez e mais uma vez num ciclo sem fim de dor pro divertimento alheio só pra isso pra existirem mais histórias a serem contadas mas enfim desculpa falei demais né tá ficando tarde vamo pedir a conta logo acho que a gente bebeu essas seis cervejas mesmo eu te acompanho até o metrô posso te dar um beijo?

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

x / o

num ano vagando por entre ventanias passadas
eu cresci observando os passos delicados
que desapareciam pisada após pisada
pela escada descendente de seu quarto
de seu conforto
até estar fixa ao lado

conheci o cheiro indistinto e ocre
o estranho ritmo monocórdico d
um leve pulsar
que passava desapercebido a maior parte do tempo

eu cresci por entre faces borradas
que achavam sua segurança
em padrões disformes
linhas traçadas paralelas e transversais
e cresci assim

eu como eles
eu mais eles do que eu próprio

e procurei por entre altos muros de mármore e concreto
pelo rosto e pelos dentes talhados
revelados numa foto trêsporquatro
procurei por entre pesos e por vezes procurei
absorto
como se nada mais importasse &/ou como se tudo fosse importante
procurei pela verve
procurei pela voz e pela rouquidão

(um ronco)

eu vaguei pelas tribos solitárias
e pelas tribos enaltecidas
e procurei por entre altos muros de concreto e mármore
pela escada ascendente do teu quarto
em silêncio

e eu peço para ir embora e eu peço para voltar
repetidas e infinitas vezes
num monocórdico tom
- que não é lamento nem rejubilo -
mas o drone metálico e frio
que ressoa ocre e que
às vezes
me consola

um ano eu passei vagando pela beira
de furacões e calmarias
e cresci e me tornei sábio e me perdi novamente
por entre os ventos talhados em rostos imutáveis
que permanecem estáticos no tempo
como se apenas o que importasse
fosse o tempo em si
e nada mais.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Jennifer Clotilde

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  Chega em casa tarde da noite, o corpo cansado e torto dos pedidos do dia, duas-conduções-ida-e-duas-conduções-volta, sacolejando por entre outros corpos, o uníssono metropolitano do transporte público; fígados e rins numa mesma vibração involuntária de acordo com o ranger dos trilhos do metrô. A cama se espalha num mar branco de lençóis límpidos, a colcha e um edredom amarrotados, desnecessários, impreteríveis.
  Espreguiça-se lentamente, sentindo cada osso estralando, músculos se repuxando, movimentos perfeitos de uma máquina invisível; quem sabe brote um sorriso inocente, despido de qualquer necessidade, de qualquer alegria palpável – um reflexo motor aliado às tuas juntas.
   Um ronronar ao fundo, o estômago vazio. Duas dezenas de pensamentos alheios, desejos incomensuráveis, batem-lhe ao fundo, a azia retumbante, olhos injetados de sono; despe-se das roupas pesadas, encharcadas do seu cotidiano como as roupas dum náufrago, afundando-te mais e mais. Sua camisola, sua pantufa, seu pijama favorito, sua pele e pelo – a única coisa, qualquer que ela seja, que te conforte.
   Espreguiça-se mais uma vez.
   As molas do colchão rangem quando se joga nele, um rebuliço abafado de felicidade.
   Deixa exalar o cheiro imprudente do seu corpo; deixa que ele contamine seu lençol, seu quarto, sua vida. Deixa que eu me embeba nele; dele se derrama o leite perene de sua juventude, & dele nasce a peste enraizada em meu peito.
   Um leve batucar dos seus dedos, melodiando os nossos dias, buscando um cigarro fujão; um grito contido garganta abaixo, reverberando silenciosamente, ecoando por seus dentes – extensões cálcicas & figurativas do seu tão adorado esqueleto. Bílis convergida em imagem, sonhos convertidos em bílis. Sua respiração descompassada, pálpebras que se fecham em 24 frames por segundo. Meu anseio e teu anseio, duas pinturas surrealistas, irascíveis e irrealizáveis.
   Ossos que estralam, bocas que se perdem; o azedume do cotidiano empapando nossas línguas, silencioso e conspirador.
   Sua graça é sua brevidade, seu silêncio; a dor que sinto de você, nunca dita, nunca tocada. Uma fragilidade quebradiça, exoesquelética, coagulada e pustulenta. O teu câncer, meu bem; o teu câncer.
   Mãos que se resvalam num conto. Clichês acumulados por anos e anos de histórias. Corpos embalados por um ruído disforme, pela visceralidade dos próprios corpos, aconchegando-se através dos séculos, através dos dias, cortando-se ininterruptamente;
   o sangue verte como o leite, como a peste;
   ossos que espreguiçam-se em melodias orgânicas;
   bílis convertida em sonho convergindo-se à boca;
   a imprudência azeda do meu anseio;

   & você adormece, numa noite sem sonhos.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Ensaio de Caramelo

   Sentada em um morrinho ainda orvalhado, buscando imagens e padrões indistintos nas nuvens, Caramelo fuma seu cigarro de menta. É a tarde de um dia frio e ligeiramente cinzento, do jeito que ela gosta. A brisa gelada bate de encontro com seu rosto, balançando seus cabelos castanhos para o lado, um sopro em sua nuca arrepia os pêlinhos loiros e imperceptíveis de seu corpo. Em sua imaginação, Caramelo parece, nesse exato momento, de óculos escuros num dia frio de agosto, sentada em um morrinho olhando nuvens carregadas, como uma atriz francesa, seu rosto blasé apenas a representação de uma alma em agitação, fervendo por dentro, protegida por um cachecol, lábios rachados; por entre os seios,  pendurando e se elevando no ritmo da respiração dela, cai uma medalhinha de São Tomás de Aquino, presente de sua avó 20 anos atrás, quando o mundo e a razão e a fé faziam nenhum sentido, e uma medalhinha era somente isso - uma medalhinha. Ela suporta o vento e o frio inabalável, numa beleza incauta que, nos anos vindouros, alguns vão perceber que ela sempre teve - ou não.
   Caramelo não se chamou Caramelo durante toda a vida, mas esse é seu nome agora. Ele (i.e., o nome) lhe foi dado por um namorado gringo, numa relação tempestuosa que durou sete meses, e deixou Caramelo com apenas três recordações: uma pequena cicatriz próxima ao seu umbigo, causada por um caco de vidro de uma garrafa de cerveja arremessada contra a parede, um coração partido e um novo nome. Durante uma noite agitada, o namorado gringo disse que ela tinha sabor de doce infantil, e batizou-a Caramelo num momento ecumênico na cama, desenhando um triângulo equilátero em sua testa com os dedos molhados de vodca. E, quando ele partiu, Caramelo decidiu que devia ser Caramelo para sempre, se não para lembrar aos outros o sabor que tinha, ao menos para lembrar a si mesma.
   Caramelo fica a olhar um horizonte quebrado por uma pequena torre de sino duma igrejinha qualquer, que na verdade não tem sino algum - é uma casca oca e vazia; simbólica, sem dúvida, mas sem razão para ser. Nenhum objetivo prático. Nas ultimas semanas, Caramelo tem se sentido assim também - se alguma vez houve uma razão para sua existência, uma grande linha de destino correndo para frente e para trás dela, essa linha foi cortada, ou se manchou com goles de café desperdiçados e cinzas de cigarro, cuja mira errada em busca do cinzeiro deixou-as a vagar pelo ar.
   Os pés, calçados num All-Star preto, sujo e já desbotando, se enterram entre a terra fofa, orvalhada, e ela sente falta da época de andar descalça, sentindo o barro penetrando por entre os dedos, gelado e pegajoso, escorrendo pelas dobras e preenchendo o vão que os risquinhos do pé criavam. Talvez fosse esse o motivo pelo qual Caramelo gostava de se sentar no morrinho. Aquele era o único lugar que conhecia no qual, às vezes, ela podia se reencontrar com aquele gosto da grama molhada contra as palmas da mão, o cheiro da chuva ricocheteando contra a terra quente, todo o aroma bucólico que existia apenas em sua cabeça.
   A imaginação dela dava voltas e se recriava constantemente, construindo um mundo glamouroso de artista cult, poetisa incompreendida, amazona urbana, amante fiel - Twiggy, Frida Kharlo, Sylvia Plath e Julieta, todas unidas numa única torrente de pensamento, num mesmo desejo inconstante de Caramelo, a garota doce, ser alguém que não ela mesma; de ser alguém marcada por qualquer coisa que não pela ferida aberta de conhecer-se como um favo de mel em estado de torpor. Ser uma escritora maldita ou a garota comum que se vê num relance pela porta do metrô e se apaixona, mas nunca, nunca mais, ser Caramelo.
   Ainda assim, mesmo buscando essa distância de ser ela própria, voltar a ser m#51#9# já não era mais possível. Voltar a ser quem era ela antes de ser quem ela é era renegar o que tinha aprendido, e a dor de aprender o que tinha aprendido, que era justamente o motivo de querer se transformar, criar uma nova identidade. Ser, novamente, quem ela foi (i.e., m#51#9#), era regredir a um ponto que não só ela não teria esse aprendizado, ou o desejo de ser outralguém, mas ser inocente quanto ao que aprendeu e, por isso mesmo, suscetível à passar pelas mesmas experiências, e aprender, novamente, as mesmas lições.
   As nuvens cinzas se condensavam, ficando mais próximas uma das outras, pedindo carinho e afeição. A primeira gota desse esbarrão cai próximo à sua mão, tomba e dá uma cambalhota, o que se revela um trágico acidente - o impacto desmembra a jovem gotinha, cujos bracinhos se esticam para fora de seu corpinho, jogados ao léu e perdidos por entre as folhas caidas. Seu tronquinho de gota abre-se, a coluninha rasga-a por dentro, expondo as minúsculas tripinhas de H2O pelo campo. Uma das perninhas, quão irônico!, lança-se ao ar, dá um mortal duplo, e aterrisa no dedo mindinho de Caramelo, que finalmente nota a iminete chuva. Uma tragédia precede uma tragédia, que precede uma tragédia, todas elas crescendo, umas sobre as outras, em tamanho e dramaticidade, e nenhuma delas tendo qualquer importância.
   Caramelo termina seu cigarro, e enterra os restos mortais na terra úmida, com a sola do seu All-Star. Foi um dia bonito, definitivamente. Levanta-se, dando tapinhas na bunda para tirar a terra e os pedaços de grama colados no tecido, e sai caminhando para fora do parque. Ao chegar na esquina, para em frente ao ponto de ônibus, e aguarda pela condução, odiosamente cheia e paquidermicamente lenta. Finalmente, chega à linha de metrô. Ao sentar-se no último lugar vazio, revirou sua bolsa e retirou uma cópia suja e maltrapilha de Jane Eyre. Abriu o livro na página marcada, e tentou retomar a leitura, mas era impossível; a cada solavanco, cada tremida do trem, Caramelo erguia sorrateiramente o rosto, procurando um olhar de desejo perdido em sua direção; aquele momento inegável de paixão avassaladora, que não nasce - explode! - num milésimo segundo de um dia qualquer.
   Desceu em sua estação virgem de ser vista.
   Subiu os degraus que levavam ao seu apartamento de dois em dois, para fingir que tinha pressa. Abriu a porta lentamente, com o pé no batente, procurando pelo outro morador. Schrödinger estava, como de costume, estirado no sofá, lambendo seus bracinhos pretos. Abriu a porta sem ter mais medo. Sentou-se ao seu lado, e esticou sua mão para acariciá-lo.
   Schrödinger arqueou a coluna, num momento de desconforto. No fundo, ele apreciava a companhia da garota com quem dividia o apartamento, mas lhe deixava constrangido a profusão dela, a necessidade que ela tinha com ele - e com mais ninguém, na maior parte do tempo - de demonstrar-lhe o afeto, essa coisa de tocar, tocar, tocar! Ele sabia que era querido; o pote de leite e a vasilha com comida - seca, é bem verdade, mas com um gostinho de atum que ele gostava um bocado -já lhe diziam o bastante. E ele não se importava de se aninhar por entre as pernas dela, debaixo da coberta, nas noites um pouco mais frias, como essa prometia ser, aliás. Mas, e esse era um ponto que Schrödinger não podia ressaltar o suficiente, isso não significava que precisasse passar o tempo todo juntos, ou se agarrando. Eles não tinham um bom acordo, afinal de contas? Ela lhe dava comida, leite e pernas quentinhas, e ele ficava ali, sendo schrödinger para ela. Para que complicar as coisas?
   Caramelo acariciou Schrödinger, e percebeu a coluna arqueada dele. O maldito gato estava arisco, de novo. Quão estúpido e ingrato ele poderia ser? Ela lhe dava não apenas carinho, mas comida; tirava-lhe leite da própria garrafinha, uma dessas garrafinhas de leite direto da fazenda, tendenciosamente natural e saudável e caro, e ainda deixava-o ficar se enroscando nas pernas dela, atazanando o sono por horas, até conseguir se acostumar novamente com a bola de pelo sissiricando pelos seus joelhos. E era assim que ele, Schrödinger, o Gato Cuzão, lhe agradecia - ficando todo iriçado e irritadiço por um simples cafuné.
   Ou seja, a vida de Caramelo era uma suscessão de incômodos que ela causava aos outros, que, em contrapartida, lhe devolviam o incômodo por serem incomodados; um círculo infinito de pequenos gestos que se tornavam grande gestos, terminando com garrafas quebradas, abandonos e miados resignados.
   Lentamente, ela se levantou do sofá, em direção à mesinha que sustentava seu notebook. Schrödinger, aproveitando a ausência da mão em suas costas, retesou as patas traseiras, deu um pulo gatosférico ao chão, e saiu num pinote violento rumo à cozinha. Se notou a mirabolante fuga do seu companheiro, Caramelo não deu sinal disso. Sua atenção estava na pasta de música, trocentas MP3s acumuladas, a maioria com tags fora de ordem, dificultando o acesso a elas. Por que ela nunca arrumava essas músicas no momento em que ela as baixava era algo que ela sempre pensava e que, como se pode notar, sempre postergava. Finalmente, achou o que procurava - um dos discos do M83 -, e colocou-o para tocar, a todo volume. Sabia que só poderia desfrutar de três músicas nesse tom; ao que começasse a quarta música, o gordo Sr. do Andar de Cima já teria avisado o síndico, que estaria à porta de seu apartamento - seu e de Schrödinger, que diabos! -, pronto para mais uma bronca, quem sabe mais uma multa? Tendo isso em mente, ela sabia que, ao final da terceira música, já teria de abaixar o volume, o que queria dizer que, claro, ela tinha de escolher bem as três primeiras músicas, e degustá-las no ápice de sua atenção, toda sua energia voltada para apenas nove ou dez minutos de puro deleite musical.
   Que tipo de vida ela levava, onde tudo o que ela consegue é isso? Dez minutos de música que ela gosta, num volume que ela aprecia, antes que tudo venha abaixo? Um gato ingrato, que se lambe libidinosamente em SEU sofá, que dorme entre SUAS pernas, e ainda se dá ao direito de agir como um garoto de quinze anos, fugindo de um compromisso mais sério, como se ela estivesse o condenando a ser seu amante eternamente? Uma pequena cicatriz avermelhada próxima ao seu umbigo, e um nome que se embrenhava por todo seu ser, como se seu batismo tardio tivesse condenado-a a infinitamente vagar pela consiência de quem ela foi, e de quem nunca mais será?
   Caramelo se afunda no sofá mais uma vez. Revira a bolsa, e retira o maço de cigarros, amassado pela superpopulação do ônibus. Dá uma tragada profunda, e vê os pequenos anéis de fumaça se formando pelos céus de seu apartamento, enquanto ela a expele de seus pulmões. As nuvens de fumaça se espalham, como se estivessem se dissipando, abrindo-se para o Sol. O pensamento que lhe ressoou o dia inteiro toma forma, cresce e lhe conforta.
   E, pela primeira vez, Caramelo sorri.

   Foi um belo dia, definitivamente.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Deméritos

Quando chovia, na época em que eu morava sozinho numa kitnet próxima ao largo Treze e mal saia de casa, eu tinha um pequeno ritual: arrastava a mesinha de centro - que na verdade era um compensado de madeira redondo e gasto - e uma cadeira para perto da janela, junto com o cinzeiro e uma xícara de café, geralmente já frio, e ficava sentado, observando o prédio vizinho se tornando uma imagem turva pelas gotas grossas e constantes.
Eu sequer reparava, na grande maioria das vezes, na construção deste cenário. Em um instante eu estava sentado na privada, lendo qualquer revista que tivesse arrumado no decorrer daquela semana, ou estirado no colchão-sofá da casa e, de repente, lá estava eu, sentado com um cigarro aceso pendendo entre os dedos, enquanto a cidade se enxarcava mais uma vez. Mesmo nesse instante, consiente de minha posição de observador-passivo-de-janelas, eu pouco podia fazer senão me deixar ali, às vezes exercendo uma força tremenda (ou era assim que me parecia) apenas para erguer o braço e dar um trago. E, quando a chuva diminuia, e a janela era apenas um reflexo embaçado da imagem que eu antes tinha, então só me restava arrastar os móveis (i.e, o compensado de madeira redondo e a cadeira) de volta aos seus lugares, atirar o resto de café gelado na pia, e acender mais um cigarro, no caso de haver mais um no maço - o que era bem raro em dias como aqueles.
Minha última namorada, de nome Giselle (data de término: 05 de dezembro de 2008, uma sexta-feira, às 21:35), costumava dizer que esse era o momento-chave de meu demérito enquanto homem; segundo ela, sentar-se em frente à janela chuvosa, envolto em cafeína e tabaco, era uma atitude perdedora, que demonstrava que eu era senão um moleque, jamais um homem. E, apesar de concordar com ela sobre minha fraqueza perante a vida, eu odiava o fato dela sempre classificá-la como "demérito". Eu detestava a palavra, a impertinência forçada no acento, "um demÉHrito", toda a pompa de nariz empinado e nojo enquanto a pronunciava. Odiava tanto, mas tanto, que me tornei um defensor do demérito: passei a buscá-lo em cada uma de minhas atitudes, em cada palavra proferida, em cada assinatura de documento; meu maior desejo, meu único propósito era fracassar em tudo, em ser senão um demérito de toda a expectativa, de todo a confiança, um demérito para todo o afeto já dispendiado por mim.
Parei de me barbear; a gilete cegou sozinha, abandonada no pequeno armário do banheiro, enferrujando diariamente. O cabelo cresceu, ensebado e crespo, coberto de caspas; um couro cabeludo cheio de feridas. As unhas ainda eram aparadas, ainda que num espaço de tempo muito maior do que antigamente.
Eventualmente, por mais irônico que o seja, fui bem-sucedido em ser mal-sucedido: em pouco tempo, ela se fora. Todos se foram, aliás. Pais, amigos, empregadores, cachorros, gatos, insetos - somente o demérito ficou, quieto, grudado em minha pele como um carrapato, uma mancha sanguessuga de insucessos e incertezas; uma pestilência leve, de cheiro acre, envolvendo todo o espaço ao meu redor. E ainda hoje, quando por acaso o ar me falta nos pulmões e, ofegando, minha respiração se torna mais forte, o demérito ainda exala, queimando minhas narinas, a lembrança de épocas onde eu podia observar a imagem turva da chuva, sem que a janela me parecesse um espelho côncavo d'alma.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

...e a sua vida poderia ser ainda pior...

É horr-rr-rrível ser gagaggg-g-gago! Tente xi-xi-xiing-gar alguém de "pu-pu-pupp-pp-pu-ti-ti-nnnha"! Perde todo o ef-ef-ef-ff-ff-feito.....

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Pequenos desvios de curso em alto-mar (ou como retorcer estômagos vazios com gim)

Ela cresceu. Tem 22 anos agora; as espinhas desincharam para dentro do seu rosto, os seios despontaram, e ela agora anda nua pelo quarto, o telefone na mão e o espelho refletindo o corpo que ela outrora se cansou de amaldiçoar. O corpo que ele admira, de longe, secreto e em silêncio.
E seguem alheios um ao outro, distância segura, um sorriso guardado e a cada suspiro a visão embaçada um do outro vem e volta, um único frame de desejo retorcido; a ausência do palpável, a discrição medida, ainda que imposta; a falta de ousar... mesmo que, em segredo, não durmam sem pensar um no outro, mesmo que seus sonhos sejam frequentemente conectado, construídos pela vontade mútua; ainda que os corpos sejam tocados na imaginação, os lábios, a pele macia e indistinta - tudo apagado pela voz estridente do despertador -; mesmo assim dentre eles não há nada que não seja platônico, que não seja guardado. Que não seja irrealizável.
Ambos são uma fagulha única perdida na escuridão.
E se embriagam um na falta do outro.
E cada beijo roubado é um sonho perdido entre os sons da cidade.

Eís o destino, paralelo e irreconciliável, dEle e dEla. Os passos ecoam e se perdem antes de chegarem aos ouvidos alheios. E não há nada, nem mesmo o amor - sobretudo o amor! - que possa apaziguar o tremor e o vazio que a falta do toque um do outro traz, ainda que nunca tenham se tocado.
Ainda que nunca tenham se conhecido.
Ainda que nunca irão se conhecer.